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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Carta Aberta aos 230 Deputados à Assembleia da República

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2014

Assunto: Um "acordo ortográfico" autofágico inconseguido, a sapateia socialista num grupo de "trabalho para lamentar", a inexorável deriva dos continentes, e o matulão que bateu na minha avó

Exmo(a). Senhor(a)
Deputado(a):

Não peço perdão pelo humor negro e consequente sem-cerimónia contidos, desde logo, no assunto desta missiva pois, interpelando cada um dos Senhores Deputados, faço-o comunicando com um ser humano que presumo compreenderá como a Assembleia da República (AR) já ilegitimamente dispôs da minha Língua Materna sem mandato popular (nos programas eleitorais sufragados) para o fazer, nos idos de 2008. Faço-o, não só em representação da Petição que será debatida em plenário na próxima sexta-feira, dia 28, e não apenas em nome das mais de 40 mil pessoas e entidades informalmente reunidas no nosso grupo "Em aCção contra o Acordo Ortográfico" (AO) na rede social Facebook, onde essa Petição teve origem, mas enquanto pessoa pertencente a um povo soberano que liminarmente rejeita, por esmagadora maioria (superior a dois terços), este atropelo destrutivo do nosso mais precioso bem cultural, o suporte material da nossa identidade-memória colectiva. Trata-se de um linguicídio na forma tentada, nada menos.

Tenho, por conseguinte, a honra (ou a veleidade) de assim dar voz à estupefacção e à objecção de consciência dos espectadores da nóvel Engenharia Genética aplicada ao Português-padrão consuetudinário, activa e abjectamente imposta a todo o Sistema de Ensino e à Administração Pública, e impingida à sociedade civil através da manipulação de grande parte dos meios de comunicação social, em particular das televisões generalistas (com destaque para o serviço público de rádio e televisão), tentando artificiosamente criar um "facto consumado" a nível nacional. Com o AO supostamente "em vigor", vigora sim um caos linguístico desagregador, a inferência de que "cada um escreve como quer" suscitada por facultatividades erráticas e excepções casuísticas que nem pessoas, nem programas informáticos, podem ou poderão integrar ou dominar. Passa para os mais novos a impossibilidade de "fazer bem" no acto de escrever, o tanto-faz, a displicência e a tudo isso intimamente se associa uma desvalorização da Cultura Portuguesa, da própria identidade nacional e da matriz civilizacional europeia, aliadas ao cada vez mais profundo desconhecimento do património literário correspondente. O Lince "papa-letras" revela-se plenamente ferramenta da autofagia lusitana, só sustentável pela mesma reverência acrítica que sustentou longamente entre nós a Santa Inquisição; no ILTEC (Instituto de Linguística Teórica e Computacional), o VOP (Vocabulário Ortográfico do Português) faz-se, desfaz-se e refaz-se ao sabor dos ventos do desnorte interpretativo do texto incongruente; e, nas escolas, o "acordês-mixordês" é diferente consoante os manuais provenham de um ou do outro grupo editorial, de entre os dois (Grupo Porto Editora e Grupo Leya) que detêm o monopólio deste negócio milionário consentido por um Ministério da Educação invertebrado, onde parecem alojar-se todos os interesses excepto os que deveriam ser servidos.

Pedia um Deputado poeta, na nossa audição de peticionários (ocorrida a 2 de Julho passado, escassas horas após a demissão irrevogável de Paulo Portas, e disponível em http://youtu.be/UjzMpnJFEjY) , «uma abordagem o mais despida de sentimento possível» (sic), perante a minha invectiva de que fossem aferidos os danos produzidos por esta invenção disgráfica na aprendizagem da Língua Portuguesa pelas crianças actualmente em processo de (an)alfabetização: tragam mais papéis, fazemos colecção... Havendo crianças expostas a riscos objectivos, evidentes e iminentes, será mais eficaz esmiuçar alíneas já inventariadas e recriar esquemas já esboçados, ou dar um grito e deitar-lhes a mão, às crianças? (Escrevo com o afecto de mãe, falei como mãe, tenho esse direito, tenho esse dever.) Eis-me ainda plenamente convicta de se ter esgotado há muito – pelo menos desde 2008, nos pareceres totalmente negativos engavetados, escondidos da AR, no Instituto Camões – o fastidioso argumentário, sendo que hoje os resultados do infeliz experimentalismo heterográfico entra pelos olhos e pelos ouvidos dentro. Para os defensores do indefensável será sempre essa apenas a minha "ótica" mas, contra factos (como os impactos óbvios na pronúncia, na leitura e na compreensão dos textos escritos), nem há contra-argumentos.

Creio, de facto, já esgotadas, porque repisadas, as exortações e os reptos fazendo a dissecção do absurdo qual nova autópsia de um cadáver exumado deambulando no quotidiano dos cidadãos portugueses – esse tratado internacional abstruso que Portugal ensaia em vão aplicar, isolada e autodestrutivamente, que o Brasil ignora olimpicamente e que a África lusófona repudia soberanamente. Mesmo Cabo Verde, tendo ratificado o AO (contrariamente a Angola e a Moçambique), estima tentar aplicá-lo... em 2019, se tiver recursos para tal, e entretanto o continente africano constitui-se relicário da Língua Portuguesa intacta, costumeira, tal como ainda existe nas mentes dos que, por cá, lêem versões de "acordês-mixordês" mutiladas por correctores informáticos discrepantes como se de "gralhas" se tratasse, ainda dispondo da alfabetização que receberam para compreender o que está escrito.

Mas há e houve Deputados poetas. Um dos que houve contou-se entre os quatro que votaram contra em 2008, sendo desses o único que ignorou a "disciplina de voto" imposta por todos os partidos políticos, excepto o CDS, numa matéria sem qualquer conteúdo ideológico, que remete para a consciência individual e para o dever de representação popular.

O Grupo de Trabalho de "Acompanhamento da Aplicação do AO" foi também criado sob proposta – e certamente não sem cedências – do Deputado poeta que interveio na nossa audição de peticionários. Enquanto isso, a Assembleia da República continuou escrevendo "atas" e votando "projetos", «subalimentada de sonho», como diria Natália Correia, Deputada poeta... Neste Grupo de Trabalho, o Coordenador socialista, Carlos Enes, estendeu a passadeira vermelha à sua conterrânea, camarada de partido e de Comissões Parlamentares, a ex-Ministra Gabriela Canavilhas – responsável pelas celebrações do lançamento do conversor ortográfico "Lince", no Palácio da Ajuda, em 2010 – na defesa da obra do anterior Governo, em especial a de uma ex-Ministra da Educação ("Uma aventura governativa" de uma autora infanto-juvenil?) cujos tristes títulos, no comercial Plano Nacional de Leitura, excedem o dobro do número dos de Sophia, ora "acordizados". Tendo sido alegadamente interpeladas todas as Universidades quanto a esta matéria, só duas se terão pronunciado, e favoravelmente ao "status quo": a Universidade de Coimbra, representada para esse efeito por Carlos Reis (conterrâneo e camarada de Carlos Enes e de Gabriela Canavilhas, o primeiro a ser ouvido em audição por este Grupo de Trabalho), e a Universidade Aberta de Lisboa (a única de que Carlos Reis conseguiu ser Reitor e onde Carlos Enes, professor do Ensino Secundário, leccionou).

Todavia, como bem sabem os geólogos, sobretudo se Deputados e poetas, a deriva dos continentes prossegue inexoravelmente. Enquanto em Portugal se cumpre uma directiva de implosão cultural (um genocídio virtual bem objectivável nos motores de pesquisa da Internet) concebida no ócio de dois provectos dicionaristas cuja Língua Materna nem foi o Português, veraneantes da "Lusofonia", circunstancialmente representando duas ineptas Academias, o Brasil "não está nem aí", faz questão do trema nos pinguins, não aglutina qualquer "manda-chuva", mantém a acentuação nas suas ideias.

Redundaram todas estas "avarias", recentemente, no já oficial propósito brasileiro de "simplificar e aperfeiçoar o AO" (sic), ao ter-se revelado insuficiente o extenso incumprimento do AO espelhado no VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa) editado pela ABL (Academia Brasileira de Letras). Foi, unilateral e assumidamente, esta via de simplificação e aperfeiçoamento que levou, primeiro, por diligências de Senadores junto da Presidência, ao adiamento da vigência do AO no Brasil para 2016 e, depois, à criação de um GTT (Grupo de Trabalho Técnico) no Senado brasileiro, incumbido de tal missão, calendarizando as suas actividades até essa data.

A pedido da Comissão de Educação "irmã", os dois Coordenadores desse GTT foram recebidos na AR, num momento que não hesito em qualificar de profundamente vexatório para todo o povo português. Aos expedientes com o objectivo de ocultá-lo seguiram-se as infrutíferas tentativas de desvalorizá-lo, mas ei-lo fielmente transcrito neste tríptico de vídeos: http://www.youtube.com/playlist?list=PLyO-MyI1XE1XRE0I_AEUjjaMIxX7YA0tc . Dura duas horas, a "banda sonora" dessa recepção, somadas as titubeantes boas-vindas da VIII Comissão e a reunião "à porta fechada" com o já encerrado Grupo de Trabalho coordenado por Carlos Enes e Gabriela Canavilhas, porém creio será este um visionamento indispensável para a integral compreensão das actuais repercussões para Portugal do assunto que será debatido e votado na próxima sexta-feira.

Resumidamente, apresenta-se (1) toda a incompetência que ressuma do texto do tratado internacional em causa, em tudo quanto ultrapassa a imposição a portugueses alfabetizados de uma ortografia concebida durante a ditadura de Getúlio Vargas para fazer face a uma gigantesca taxa de analfabetismo, total e funcional, que perdura e se agrava até hoje, no Brasil, na sequência histórica da manipulação unilateral do Português iniciada pelo Brasil em 1906 (facto sistematicamente branqueado, provavelmente pela "lógica petrolífera" que ostensivamente reina na C.P.L.P....), e (2) uma proposta de ortografia "simplex" do "Brasileiro", em que todos os "ch" seriam substituídos por "x", todos os "qu", por "k", o "h" abolido, etc., denotando o quão alheado está o Brasil da cultura que lhe levou a Língua outrora, podendo aí entrever-se uma clivagem entre Língua e cultura responsável quiçá, em acréscimo a um Ensino Público absolutamente desinvestido, pelos calamitosos indicadores culturais que colocam o Brasil, internacionalmente, no patamar dos Países mais subdesenvolvidos neste capítulo, cotado bem abaixo de Países com um P.I.B. muito inferior.

Certamente os Senhores Deputados conhecerão, da Língua Inglesa, os vocábulos "cough" (lê-se "cóf", tosse), "tough" (lê-se "tâf", resistente), "though" (lê-se "dâu", apesar de), "through" (lê-se "thru", através de), "plough" (escreve-se "plow" nos Estados Unidos da América, lê-se "pláu", arado)... A sequência "-ough" é etimológica e pronuncia-se das mais variadas formas. A escrita não é, nem pode ser, uma transcrição fonética; é uma realização da Língua que permite a sua estabilidade temporal e a sua continuidade histórica, veiculando uma dimensão simbólica que transcende a oralidade e não se compadece de manipulações artificiais operadas por conveniências de qualquer espécie. De facto, sem mudanças ao longo dos últimos três séculos, o Inglês-padrão de Oxford não se queixa da sua pujança (e prestígio!) internacional, nem sofre ou rivaliza – antes ganha – com o "americano", sendo não só sintoma do poder económico do conjunto dos Países anglófonos (em todas as suas variantes), mas sobretudo consequência da confluente pujança da actividade literária, da indústria cinematográfica, em suma da qualidade de todas as realizações culturais da Língua viva.

O próximo dia 28 é também, por coincidência, o último dia da exposição de fotografia de Gastão Brito e Silva, do seu projecto "RUIN'ARTE", patente na Assembleia da República. Lá podem ver-se, em ruínas (algumas já demolidas), jóias da memória de Portugal votadas à incúria de nós todos, uns com mais responsabilidades do que outros, e o esforço gracioso e quixotesco de um homem na pesquisa, na denúncia, no inconformismo, desde 2008. Nesses olhares gritados sobre escombros do corpo de um País, veja-se também, em espelho, a materialização do ataque que, por negligência grosseira, se vem desferindo ou consentindo contra a Língua Portuguesa. Seja no corpo, seja na alma, aí está bem patente a falta de amor-próprio, a ignorância epidémica, o mercantilismo néscio: não sabemos ser dignos das gerações passadas nem das gerações futuras.

A memória de um povo só o é enquanto não for apenas pensada, mas agida, pois não se transmite por capilaridade, por "ouvir dizer", transmite-se por actos, por valores, por um quotidiano vivido de realidades que transportam, operam e reformulam a narrativa que fazemos sobre quem somos. Nas palavras, permanecemos mais que nós, somos o que fomos e o que construirmos com base nessa continuidade natural, espontânea, que o uso consagra e a consagração usa. Entre o passado e o futuro, situar-nos-emos e seremos a âncora identitária dos vindouros, privilégio e responsabilidade nossa.

Em 1986, juntei-me ao movimento de contestação ao anteprojecto de AO Luso-Brasileiro, no Grémio Literário. Vinte e sete anos volvidos, assisto hoje ao descalabro que então se temia. Vejo uma "geração cobaia" de crianças e jovens ser preparada para a iliteracia por via das multigrafias provisórias que os políticos desta terra entenderem fazer "vigorar" em cada momento e dos negócios que se fizerem em torno disso. O espaço que parece sobrar para os financiadores dos partidos políticos e para os feudos criados pelos "pactos de regime" é o mesmo espaço vital que se afigura escasso para os cidadãos. Esgotadas as vias políticas, parecem restar-nos as vias judiciais para pôr cobro à insustentável prepotência-de-Estado.

Eis a parte do "matulão que bateu na minha avó", metaforicamente em epígrafe. Cabe a cada representante eleito de nós todos sê-lo, ou não.

Se o AO morreu no Brasil, que morra em Portugal. Já chega. Que morra. Pim!

Madalena Homem Cardoso

(representante da «Petição pela Desvinculação de Portugal ao "Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa" (AO90)», Petição nº 259/XII/2ª)

N.A. – FIXAÇÃO "NE VARIETUR" DO TEXTO DESTA CARTA ABERTA – A autora desta comunicação declara que não autoriza a transformação por meio do conversor “Lince”, nem a adulteração por qualquer outro meio, informático ou manual, de “correcção ortográfica” ou outro, deste texto ou de excertos dele retirados, manifestando tal oposição ao abrigo da norma declarativa constante do artigo 56º, nº 1, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

REQUERIMENTO

Exmos. Senhores

Ministro da Educação e Ciência
Prof. Doutor Nuno Crato
Avenida 5 de Outubro, 197
1069-018 Lisboa

 e

Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros
Dr. Paulo Portas
Palácio das Necessidades, Largo do Rilvas
1399-030 Lisboa

REQUERIMENTO

Madalena Homem Cardoso, portadora do B.I. nº (), emitido pelos S.I.C. de Lisboa em (), mãe e Encarregada de Educação de Inês (), aluna nº () da turma () do 3º ano da EB1 (), em Lisboa, na sequência da Carta Aberta por si dirigida a S. Exa. o Senhor Ministro da Educação com data de 24/03/2012, para a qual não logrou obter qualquer resposta durante os mais de nove meses desde então decorridos, vem interpelar Vossas Excelências por via do presente requerimento, tendo em conta que:

(1) Toda a exposição contida na aludida Carta Aberta (reproduzida aqui) se mantém actual e pertinente, e bem assim se mantêm incontestados os fundamentos que justificaram e justificam o inflexível posicionamento da requerente quanto à introdução do dito “acordo” dito “ortográfico” (AO90) na aprendizagem escolar da sua filha e educanda, no que entende ser uma responsabilidade sua que não delega, de que não se demite, no exercício do poder-dever parental.

(2) Enquanto cidadã, resta à requerente verificar tratar-se de um enorme conjunto de crianças em processo de alfabetização que está a ser lesado de modo grave e irreversível no que de outra forma seria a sua plenipotenciária aprendizagem da Língua Portuguesa escrita. As crianças, muitos milhares de crianças, estão a ser privadas do contacto estruturado e estruturante com as subtilezas e complexidades do idioma em tempo oportuno do seu desenvolvimento cognitivo – tal qual se tratasse de um instrumento musical que requer um contacto irrestrito precoce para ser dominado com a possibilidade de atingir patamares de excelência, não de mera competência básica.

(3) Por efeito da Resolução do Conselho de Ministros (RCM) nº 8/2011, o Ensino Básico foi atingido na leva da Administração Pública, com negligência grosseira, sem a prudência mínima exigível de atender aos pareceres idóneos existentes, ou de promover estudos técnicos credíveis prévios, quanto aos impactos expectáveis desta medida administrativa acrítica, assentando na ignorância e promovendo a ignorância, naquela que é talvez a mais nobre função do Estado, a de assegurar a transmissão de saberes, em particular os da herança histórico-cultural colectiva, aos mais jovens, independentemente do seu contexto social. Decorre o segundo ano lectivo desde que estes foram tornados cobaias de uma experiência desastrosa, contrária à vontade da maioria esmagadora da população e prosseguida à revelia do entendimento unânime dos especialistas (exceptuados os autores-usufrutuários do atentado cultural em curso).

(4) Por se tratar de “directiva da tutela” que começou a “vigorar” (embora ilegalmente, de acordo com diversos pareceres jurídicos) no ano lectivo de 2011-2012 e foi “diligentemente” seguida pelos dois grandes grupos editoriais que monopolizam o mercado dos livros escolares (Grupo Leya e Grupo Porto Editora), os professores viram-se compelidos a “recomendar” a aquisição de manuais redigidos no que a requerente vem designando, informalmente, por um “acordês-mixordês” errático, o qual conta com o beneplácito de uma obscura entidade certificadora. Desta forma surge o texto nos livros escolares, também porque os instrumentos que é suposto assumirem o modo oficial de aplicar o AO90 contradizem as disposições nele contidas (tal como os dicionários e “corretores” ortográficos privados variam nas interpretações do AO90, são discrepantes entre si e com os instrumentos oficiais). Porém, perante a “recomendação” de manuais feita pelos professores que, por larga maioria, se acham igualmente reféns, sentem-se os Encarregados de Educação – com poucas excepções, entre as quais a requerente se inclui – intimados a adquirir livros escolares onde o Português surge delapidado, isto é, forçados a subsidiar (e este subsídio não é despiciendo no orçamento da maior parte das famílias!) tais actos de vandalismo cultural, patrocinando antecipadamente um ensino inquinado por esses atropelos, sob pena de os seus educandos terem “faltas de material”, e assim o Estado indirecta e perversamente impõe aos cidadãos que sustentem os negócios vários que se fazem à custa do património identitário de todos e de uma deficiente aprendizagem dos mais novos, cujas sequelas são graves e irreparáveis.

(5) Surge na Declaração Final emanada da VII Reunião de Ministros da Educação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), de 31/03/2012, da qual S. Exa. o Senhor Ministro da Educação foi co-signatário, a admissão de que a aplicação do AO90 enferma de “constrangimentos e estrangulamentos” (sic), pelo que a mesma Declaração Final delibera seja feito um diagnóstico desses problemas com vista à “apresentação de uma proposta de ajustamento ao Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa de 1990? (sic), ou seja, uma revisão da redacção do AO90 enquanto tratado internacional cuja aplicação prática está a ser feita exclusiva e unilateralmente por Portugal. Desta, os resultados calamitosos são observáveis em todos os domínios (pelo apagamento da etimologia, pela desagregação de famílias de palavras e de conexões de sentidos, pela perda do vínculo com as outras grandes línguas cultas europeias transcontinentais, pelas repercussões intoleráveis na terminologia técnico-científica e nos vocabulários especializados, etc.). Instalou-se um caos “heterográfico” que a todos os portugueses cobre de ridículo (vide a nossa apresentação “Caos Ortográfico em progressão para o Linguicídio”, em anexo), o qual vem cilindrando a outrora estável variante euro-afro-asiática-oceânica do Português, apenas neste país que fez em tempos aportar noutros continentes a matriz comum. Eis de uma longa construção a rápida destruição, despudorada e mercantil, prospectiva (ao lesar o ensino da língua aos mais novos) e retrospectiva (ao pretender achincalhar por esta via todo o património literário).

(6) A despeito do iminente diagnóstico, para posterior revisão, ou “ajustamento” (sic), do texto do AO90, ambos sine die, na sequência da deliberação conjunta assinada na referida declaração pelo Senhor Ministro da Educação de Portugal, são canalizados subsídios públicos definitivos para reedições provisórias, num incompreensível afã de “atualizar” o acervo das bibliotecas escolares, mesmo sendo óbvia a sua rápida obsolescência. De facto, ou haverá uma necessidade futura de “re-reeditar” (após o “ajustamento” projectado) tudo que agora for reeditado, ou então haverá que descartar estas reedições para a reciclagem de papel, sendo que o AO90 em si mesmo não é “reciclável”, em razão da sua “multi-toxicidade” – aquela que lhe advém das excepções, das facultatividades, dos erros, das falsas premissas.

(7) O teor do Decreto nº 7875, assinado em 27/12/2012 pela Senhora Presidente da República Federativa do Brasil, protelando a aplicação obrigatória do AO90 neste país para 2016, não só faz prever o advento de um decreto análogo em Dezembro de 2015, considerando a tradição histórica brasileira neste domínio, como ainda permite inferir que a referência aos “constrangimentos e estrangulamentos na aplicação do Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa de 1990? (sic) tenha surgido na Declaração Final da VII Reunião de Ministros da Educação da CPLP, não por iniciativa de Portugal (por amor-próprio ou elementar bom senso), o único país signatário que temerariamente encetou uma tentativa desconexa e irresponsável de aplicação prática do AO90, mas sim por iniciativa do Brasil, país onde a comunidade científica e a comunidade docente são auscultadas pelos decisores políticos, e onde parece prevalecer a teoria de que deverá aproveitar-se a oportunidade – presume-se oportuna a ostensiva permeabilidade de Portugal ao “linguicídio” – para introduzir-se uma radical simplificação no idioma, eventualmente com extinção da letra “h” (“consoante muda” mais muda não há…), entre outras ideias aventadas como contributos para a invenção da novilíngua do Brasil (cfr. George Orwell, “1984?).

Em vista destas verificações, atenta a gravidade do assunto em apreço, e ao abrigo do disposto nos nºs 1 e 2 do artº 268º da Constituição da República Portuguesa (CRP), respeitante aos direitos e garantias dos administrados, no nº 1 do artº 52º da CRP, relativo ao direito de petição, e no nº 2 do artº 48º da CRP, que consagra o direito de participação na vida pública [cfr. artº 9º, nº 1, proémio, do Código do Procedimento Administrativo, cfr. também alíneas a) e b) do mesmo preceito; cfr. artº 104º, nº 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos], vem a requerente solicitar a Vossas Excelências se dignem informá-la (tornando público) se houve algum ou alguns estudos ou pareceres que, apresentado(s) por algum ou alguns dos representantes dos países membros da CPLP na referida VII Reunião de Ministros da Educação, incluindo Portugal, tivesse(m) servido de fundamento ou respaldo das afirmações e deliberações contidas no ponto 3 da Declaração Final dela resultante. Cumulativamente, a requerente vem solicitar a Vossas Excelências se dignem prestar informação sobre a existência de outros estudos ou pareceres incidindo sobre o AO90 e/ou sobre a aplicação deste, posteriores à publicação da RCM nº 8/2011, que tenham chegado ao conhecimento do Governo de Portugal, fora do âmbito da cimeira referida, de proveniência nacional ou oriundos de países terceiros.

Caso existam tais documentos, e igualmente ao abrigo da legislação acima invocada, vem a signatária requerer ainda a Vossas Excelências lhe seja dado (fazendo-os públicos) conhecimento integral do conteúdo dos mesmos.

Pede deferimento,

Lisboa, 8 de Janeiro de 2013

[assinatura conforme B.I.]

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Carta de Madalena Homem Cardoso dirigida ao Ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato, a propósito do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa



MADALENA HOMEM CARDOSO

MÉDICA


Lisboa, 24 de Março de 2012

Excelentíssimo Senhor Ministro da Educação e Ciência:

No exercício do poder paternal, cumpre-me dirigir-me a Vossa Excelência para, com a maior deferência, comunicar ao Ministério da Educação e Ciência, na pessoa do seu máximo responsável, que não posso de forma alguma autorizar que a minha filha e educanda, lnês X, com sete anos de idade, aluna n° X do 2° ano (Turma X ) na EB1 X, seja ensinada de modo não conforme à ortografia actualmente em vigor (aquela que foi promulgada pelo Decreto-Lei n° 35.228/1945 de 8 de Dezembro, e depois ratificada com alterações mínimas pelo Decreto-Lei n° 32/1973 de 6 de Fevereiro, sendo que, até à data, nada na ordem jurídica interna portuguesa veio revogar estes Decretos-Leis).

Em particular, no papel de encarregada de educação, não posso anuir a que a aprendizagem da minha filha seja perturbada pelo autodenominado "Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990)" (que passarei a referir por "AO90"), o qual não é "acordo", pois conta com a oposição quase unânime dos especialistas em língua portuguesa e da esmagadora maioria dos falantes-escreventes de Português de Portugal, tendo resultado de uma antidemocrática e antipatriótica sucessão de atropelos ao bom senso e à Lei, e o qual não é "ortográfico", pois contradiz em si mesmo a própria noção normativa de "ortografia" ao consagrar facultatividades e excepções como regras numa compilação pejada de incongruências e ambiguidades, e cuja aplicação, caso fosse desejável (não o é), caso fosse legal (não o é), se torna em tantos casos impossível, na ausência de um Vocabulário Ortográfico Comum (pressuposto, no próprio AO90, para sua aplicação, e sem o qual as ferramentas informáticas que visem aplicar o AO90 estarão a violar disposições nele contidas).

Mais solicito que a observância pela ortografia em vigor se verifique no presente ano lectivo e seguintes, pois compete-me exercer o poder paternal no sentido de suprir a incapacidade que a minha filha menor tem de assegurar sejam respeitados os seus direitos, liberdades e garantias de cidadã previstos na Constituição da Republica Portuguesa (CRP). Venho portanto, em nome dela, invocar a leitura que faço - por crer ser esta a interpretação do senso-comum - do seu direito à identidade cultural e à língua, da sua liberdade de expressão (art. 37° CRP), da sua liberdade de aprender (art. 43° n° 1 CRP), e do seu direito ao ensino (art.75° n° 1 CRP).

Fundamento e esquematizo esta solicitação nos quatro pontos que passo a enumerar, para depois concretizar e especificar cada um deles:

1. 0 AO90 não está em vigor;

2. Ainda que "vigorasse", o AO90 sempre seria uma prepotência-de-Estado, havendo especialistas que defendem que é ilegal e mesmo inconstitucional;

3. Ainda que estivesse em vigor e fosse legitimo ao Estado impô-lo aos cidadãos, muitas disposições do AO90 não são aplicáveis sem um Vocabulário Ortográfico Comum, e a criação de ferramentas informáticas visando aplicá-lo viola implicitamente o disposto no próprio AO90, além de que se prevêem alterações à sua redacção até 2015, o que exclui que os alunos possam ser constituídos "cobaias", vitimas de uma "aprendizagem" de "normas ortográficas" assumidamente provisórias;

4. Todos os cidadãos portugueses (em particular os que assumem especiais responsabilidades na transmissão do património linguístico às gerações futuras) têm, mais que o direito, o dever de desobediência (art.º 0 21° CRP: "Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias...") e de objecção de consciência (art.º0 41° n° 6 CRP) a recomendações ministeriais ilegais, além de prematuras e de impraticáveis em muitos aspectos.

Começo por sublinhar, apoiada em vários pareceres de credenciados juristas, que...

1. 0 AO90 não esta em vigor, vista que:

a) Na ordem jurídica interna portuguesa, o AO90 resume-se a uma Resolução da Assembleia da Republica (RAR n° 35/2008) e a uma Resolução do Conselho de Ministros (RCM n° 8/2011 de 25 de Janeiro), sendo que ambas constituem meras "recomendações", não têm estatuto de Lei capaz de revogar dois Decretos-Lei, vinculativos, hierarquicamente acima dessas figuras, dai que a norma ortográfica de 1945 (com as pequenas alterações de 1973) não foi revogada.

b) A disposição invocada (RAR n° 35/2008) para a suposta "vigência" do AO90 resultou de um procedimento antidemocrático da Assembleia da Republica (AR), enquanto órgao de soberania de um Estado de Direito: (I) onde se admitiu a votação de deputados que não dispunham de um mandato eleitoral claro dos cidadãos (em vista dos programas partidários sufragados) para os representarem numa questão vital como a da língua portuguesa; (Il) onde se admitiu a sujeição dos mesmos deputados a disciplina partidária (com excepção de um único pequeno partido com assento parlamentar) num assunto que, indubitavelmente fora do âmbito ideológico, remete para a consciência individual; e (Ill) onde não foram considerados inúmeros pareceres desfavoráveis (todos menos um, o único parecer favorável, curiosamente assinado por Malaca Casteleiro em causa própria), de especialistas e entidades, alertando para os efeitos nefastos previsíveis do AO90. Estes teriam sido retidos no lnstituto Camôes se não tivesse sido requisitado o seu envio à AR, mas depois não foram consultados, quanta mais debatidos, antes da aludida votação.

c) À luz do Direito lnternacional, uma suposta entrada em vigor unilateral do AO90, num dos Estados signatários, antes que seja ratificada por todos, não apenas violaria a tradição da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), violaria a Convenção de Viena (CV) sobre o Direito dos Tratados (art.º0 24° n° 2 CV), assinada por Portugal em 1969. Seria aliás muito contraditório algo que apregoa uma intenção supostamente "unificadora" pretender legitimar-se e tornar-se apressadamente "facto consumado" com a ratificação de 3 entre 7 (agora 8) países.

A despeito da sua suposta "vigência", perante a esmagadora maioria de quem se exprime em Português de Portugal...

2. 0 AO90 configura uma prepotência-de-Estado, sendo apontado por vários especialistas como ilegal e mesmo inconstitucional. O espirito da Lei, em particular da CRP, tai como se apresenta à leitura do cidadão médio, coloca o Estado na posição de defensor da língua, não confere de modo algum ao Estado o poder de alterá-la com o propósito de torná-la instrumental para fins políticos. Note-se que:

a) Fernando Pessoa, sobre a reforma de 1911, escreveu: "A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto um fenómeno espiritual. 0 Estado nada tem com o espirito. 0 Estado não tem direito a compelir-me, em matéria estranha ao Estado, a escrever numa ortografia que repugna, como não tem direito a impor-me uma religião que não aceito. No Brasil a chamada reforma ortográfica não foi aceite, nem ainda hoje, depois de assente em acordo entre os governos português e brasileiro, é aceite. Quis-se impor uma coisa com que o Estado nada tem a um povo que a repugna." (in "Pessoa Inédito"; Lisboa: Livros Horizonte, 1993)

b) Escrita e oralidade são meios autónomos e complementares de manifestação do saber linguístico, em cada idioma. A importância da língua escrita (e da sua norma gráfica) é tanto maior quanta mais complexa e "textualizada" for a vida e a memória de uma sociedade, de uma cultura. A ortografia é garantia incontornável da estabilidade da língua escrita como elemento-chave da identidade nacional, visto que assegura em si mesma a inteligibilidade e a continuidade na transmissão do acervo histórico-cultural, da memória colectiva, de geração em geração, e é além disso portadora de uma simbólica e uma poética próprias, cuja delicada subtileza e riqueza se relacionam intimamente com a antiguidade da língua em apreço e com todo o património literário que lhe está associado.

c) Consta dos "Princípios Fundamentais" da Constituição, a par com os símbolos nacionais, e não como "adereço": "A língua oficial é o Português" (art. 11° n° 3 CRP). É o Estado que, por estar subordinado à Lei, se subordina à língua; não é o Português que está sob a alçada do Estado. Uma coisa será oficializar-se o que o uso já consagrou, ajustar-se a norma a uma evolução natural, espontânea, que já se verificou no correr do tempo; outra bem diferente, e inadmissível, é o Estado pretender mudar a língua por decreto, tentar operar nela uma "evolução artificial" sejam quais forem as motivações. A língua é algo vivo e delicado, a respeitar, com reverente humildade, na sua antiguidade e no seu futuro. Não é por as águas territoriais portuguesas pertencerem a Portugal que o Estado Português pode achar-se no direito de contaminá-las. Há valores que lhe são superiores, há matérias que lhe estão vedadas (como as do foro íntimo dos cidadãos), e a própria democracia está em perigo se o Estado desconhece os seus limites.

d) "A língua portuguesa, enquanto fundamento da soberania nacional, é um elemento essencial do património cultural português." (art. 2° n° 2 da Lei de Bases do Património Cultural), e é tarefa fundamental do Estado "Proteger e valorizar o património cultural do povo português" (art. 9º alínea e CRP) de que a língua é elemento essencial.

e) Uma língua "expurgada" de etimologia, de cultura(s) - e o Português é a riqueza da diversidade cultural de tantos países e regiões do Mundo! -, de passado(s) histórico(s), não tem futuro. Mudada por conveniências e circunstâncias, mesmo admitindo a duvidosa e impraticável intenção de torná-la um "Esperanto lusófono", a língua portuguesa passaria a ser artefacto de comunicação sem valor. Existiria sem "ser", tal como o Esperanto: língua sem cultura, sem vitalidade nem substância.

Em vigor que estivesse, e nas competências do Estado que se enquadrasse, é, de qualquer forma e em muitos casos, impraticável aplicar o AO90 rigorosamente e, sobretudo, constitui grave irresponsabilidade tentar ensiná-lo a estudantes, pois...

3. Varias disposições do AO90 são difíceis, por vezes impossíveis, de aplicar sem Vocabulário Ortográfico Comum {VOC), e a sua redacção será (ou, melhor, as suas redacções serão) previsivelmente objecto de alterações até 2015:

a) As tentativas de aplicar o AO90 são especulativas, por se basearem apenas num conjunto de regras genéricas ilustradas com alguns exemplos, delas tentando inferir extensões das mesmas regras a casos não exemplificados. Tais tentativas caem, dessa forma, em conclusões "mais acordistas que o acordo" ao estabelecerem critérios quando a uniformidade de critérios esta ausente, ela própria, do AO90, documento que tem a característica peculiar de consagrar a excepção como {sua) regra. Este fenómeno resultou de as diferentes "secções" do AO90 terem sido entregues, pelo principal responsável pela sua elaboração (Malaca Casteleiro), a diferentes pessoas, que por sua vez adoptaram critérios distintos no desenvolvimento das respectivas "secções", dai a não-uniformidade de critérios ter sido notória aquando da compilação final da "manta de retalhos". Perante isso, bem mais fácil do que tentar uniformizar critérios "a posteriori", preferiu-se optar por consagrar todas as excepções que fossem necessárias, com vista a dispensar uma revisão global do texto do AO90.

A titulo de exemplo, leia-se a alínea g do n° 1 da Base XIX do AO90: "1. A letra minúscula inicial é usada: (...) g) Nos nomes que designam domínios do saber, cursos e disciplinas (opcionalmente, também com maiúscula): português (ou Português), matemática (ou Matemática); línguas e literaturas modernas (ou Línguas e Literaturas Modernas)." (sic). A norma tem uma redacção absurda, pois contém uma regra que é logo infirmada pela excepção, excepção essa que tem um âmbito igual ao da regra e assim lhe retira eficácia vinculativa, concluindo-se, com estupefacção, que a regra foi escrita para estabelecer que não existe regra.

Nos próprios enunciados, o AO90 comete erros ortográficos "tout-court" (como "insersão" e "bênção") e erros ortográficos nos termos da grafia que vem propor, além de omitir, em certas páginas, as facultatividades que, noutros locais, consagra.

Quanto à seriedade deste "trabalho", está tudo dito.

b) Ao tentar pôr em prática o AO90, qualquer aprendiz-de-grafador da novilíngua (no sentido orwelliano deste termo) que seria o Português "acordizado", qualquer aspirante a criador de ferramenta informática destinada a alterar textos em conformidade com o AO90, qualquer professor que tente ensiná-lo, estará a violar os próprios termos do AO90. O art. 2° do AO90 estipula que "Os Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração (...) de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível (...). " (sic). Este VOC nunca foi feito, e parece que nunca será feito, pelo menos não nos termos previstos pelo próprio AO90, que o investe do estatuto de condição "sine qua non" para a sua própria aplicação. Abstractos (e mal feitos), temos um AO90 publicado no Diário da República (DR), em Portugal, e um AO90 (com diferente redacção) publicado no Diário Oficial da União (DOU), no Brasil. Nada mais. Pelas seus próprios termos, o AO90 ficou pendente de um facto futuro que nunca chegou a verificar-se.

c) Na ausência do VOC, o Brasil avançou unilateralmente para a produção de um Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), contendo alterações ao AO90 tai como foi publicado no DOU. Em Portugal, surge uma bizarra Resolução do Conselho de Ministros (RCM n° 8/2011) que determina que a aplicação do AO90 se fará mediante a adopção de dois trabalhos encomendados pelo Governo ao ILTEC (Instituto de Linguística Teórica e Computacional), nos quais também foram introduzidas alterações ao AO90 tal como publicado no DR, em Portugal...

d) O XVIII Governo Constitucional entregou, portante, tal "missão" a um instituto universitário, o ILTEC, fazendo tábua-rasa da lei que determina ser a Academia das Ciências de Lisboa (ACL) a instituição competente nestas matérias, por entender não ter a ACL condições de corresponder a tais solicitações (e entender também não lhas criar). Financiadas as duas "obras" destinadas a ser a "adivinhação oficial portuguesa" das regras abstractas do AO90, constituindo a futura norma prática do Português em Portugal, a saber, o Vocabulário Ortográfico do Português (VOP) e o "conversor ortográfico Lince", o Estado Português pretende depois disso que se tome por "legislação" uma RCM que designa por "nova ortografia em vigor" os resultados da "encomenda" feita à revelia da ACL e à revelia dos restantes Estados signatários do AO90.

e) Diz a alínea c do n° 1 da Base IV do AO90, sobre o "c" e o "p" das sequências consonânticas interiores: "Conservam-se ou eliminam-se facultativamente, quando se proferem numa pronúncia culta, quer geral quer restritamente, ou então quando oscilam entre a prolação e o emudecimento: aspecto e aspeto, cacto e cato, caracteres e carateres, dicção e dição; facto e fato, sector e setor; ceptro e cetro, concepção e conceção, corrupto e corruto, recepção e receção" (sic). Mas o "conversor Lince", programa informático destinado à conversão automática de textos para versões "acordizadas", não permite aos utilizadores optar livremente entre as "facultatividades": faz uma escolha (determinada por insondáveis critérios de frugalidade consonântica), poupando-os assim "deus ex machina" a decisões pessoais. Portanto, o "conversor Lince" não respeita o AO90, não pode pois considerar-se que permita aplicá-lo.

Para além disto, alheado de que o conceito obscuro de "pronuncia culta" estava já em desuso aquando da redacção do AO90, fazendo tanto sentido resgatá-lo quanto resgatar o próprio AO90 da "gaveta" onde fora deixado, o XVIII Governo Constitucional não chegou a fazer uma outra encomenda ao ILTEC... Competia-lhe, tendo em conta o texto do AO90, solicitar também o desenvolvimento um aparelho, talvez chamado "fonoestilómetro", capaz de permitir aferir quão mais culta, ou menos culta, é a pronúncia do Pedro, de Curitiba, que a da Ana, de Carrazeda de Ansiães...

Não apenas o "conversor Lince", também o VOP do ILTEC é uma obra-prima, onde surgem do nada afirmações peregrinas como a de que "tacto" e "olfacto" são palavras que apenas no Brasil se escrevem com "c", e onde a presença ou ausência de hífenes permite distinguir entre os diferentes significados da palavra (ou expressão) "bicos(-)de(-)papagaio"...

f) Dos diferentes "exercícios de adivinhação" envolvidos na criação de instrumentos, no Brasil e em Portugal, e por diferentes entidades (como a Priberam, criadora do "corretor Flip", ou o ILTEC, criador do VOP e do "conversor Lince"), para aplicar o AO90 na ausência de um VOC resultou a curiosa saga do hífen nas palavras formadas pelo prefixo "re-" quando o segundo elemento começa por "e". A Priberam concluiu ser escusado respeitar a letra e o espirito do AO90, dado que vingou a excepção instituída no VOLP pela Academia Brasileira de Letras (ABL) invocando fazê-lo "em atenção à tradição lexicográfica" (a mesma com que o AO90 pretendia romper), excepção essa logo adoptada pelo VOP do ILTEC, VOP esse que, por sua vez, foi indicado pela RCM n° 8/2011 como obra lexicográfica de referência em Portugal, nomeadamente no ensino, a partir do ano lectivo de 2011/2012.

0 Departamento de Linguística da Priberam, considera que, ainda assim, a tradição do registo lexicográfico de certas palavras poderá ser argumento invocável quando o AO90 é omisso, como é o caso de “connosco/conosco"...

g) Recentemente, o Senhor Secretario de Estado da Cultura revelou que irão ser feitas diversas alterações ao AO90 até 2015, as quais serão sempre decididas pela comissão cientifica multilateral que esta a elaborar o VOC.

Sendo o(s) texto(s) do AO90 texto(s) provisório(s), logo sendo provisórios também os instrumentos adoptados na RCM n° 8/2011 para aplicá-lo na ausência de um VOC, como crê o Ministério da Educação e Ciência ser possível ensinar Português tomando como referência algo "novo" cujas regras serão revistas durante os próximos três anos? O "desconchavo ortográfico" chegou às salas de aula...

Como irão legitimamente sentir-se, perante isso, as crianças e os jovens, se pais e professores se demitirem das suas responsabilidades?

Pretende-se sujeitar os professores a fazer, eles próprios, uma penosa "aprendizagem" de algo que, além de incongruente, está em mutação; pretende-se que a façam para poder ensinar aos alunos, hoje, o que estará errado amanhã?

E como podem os pais e encarregados de educação aceitar para os seus filhos e educandos esse papel de "cobaias" de um Estado irresponsável?

Em conclusão, impõe-se aos cidadãos portugueses defender intransigentemente aquele que é o aspecto mais nobre e frágil (porque imaterial) do seu património cultural, a língua portuguesa na sua riqueza e diversidade, e em particular a integridade da variante do Português de Portugal.

Impõe-se ainda aos pais e encarregados de educação pôr essa defesa em prática no que diz respeito aos seus filhos e educandos, enquanto menores, quer ensinando-lhes em casa a ortografia em vigor, quer exigindo aos professores e às escolas que procedam de igual modo.

4. Todos os cidadãos portugueses têm o direito (e o dever) de desobediência (art. 21° CRP) e de objecção de consciência (art. 41° n° 6 CRP) perante recomendações governamentais que atentem contra os seus direitos, liberdades e garantias.

a) O AO90 traz em si mesmo, implícita, a grave negligência do Estado Português em acautelar uma prudência mínima no desempenho de uma das suas Tarefas Fundamentais (art. 9° alínea f CRP: "Assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesa"), dado que não foram pedidos quaisquer estudos independentes prévios sobre os impactos (fonéticos e outros) das alterações ortográficas propostas, na variante euro-afro-asiática-oceânica do Português, e uma vez que os trabalhos voluntariamente elaborados por especialistas idóneos para antever esses efeitos, pela facto de desaconselharem com veemência a adopção do AO90 à vista das conclusões alcançadas, não foram tidos em conta.

O direito de petição (art.º0 52° CRP) foi também muito expressivamente exercido, sem consequências práticas.

Dai que compete aos cidadãos suprir, através da intervenção cívica, ainda que na forma de desobediência civil, tal falta de zelo do Estado no seu dever de preservação do património linguístico colectivo, devendo agir em conformidade com o repúdio que o AO90 causa, por via do mero bom-senso, a pessoas medianamente instruídas.

b) Foi gravemente negligente, além de impositiva, a "fuga para a frente" em que o poder politico se apressou a declarar o AO90 "em vigor", ainda que largamente contestado nos meios académicos e pela população, ainda que na ausência do VOC que seria condição necessária para aplicá-lo, e ainda que não ratificado por países como Angola ou Moçambique.

Nessa "fuga para a frente", foram "investidos" todos os recursos, desde logo contando-se com a subserviência acrítica do canal publico de televisão e com a imposição às escolas básicas e secundárias levada a cabo pelo Ministério da Educação e Ciência (ajudada por manuais escolares "acordizados" de editoras que trocaram o valor pecuniário desta oportunidade de negócio pelos valores que anteriormente haviam invocado na defesa da língua), ao longo do ano 2011.

E disse-se "obrigatória" a instalação de ferramentas informáticas que apenas se revelam eficazes em destruir e pôr ridícula a língua portuguesa (pois não logram sequer respeitar o AO90) em todos os serviços públicos ou sob tutela do Estado, a partir de Janeiro de 2012.

c) Para estupefacção de um Pais, soltou-se o monstro da mercantilização destrutiva da língua portuguesa, fabricado pela diligência de uns poucos "interessados", e instalado na vida da sociedade portuguesa - à revelia - pela negligência grosseira de muitos "desinteressados", sendo já notórias as graves consequências do "caos ortográfico instalado" resultante desta tentativa de criar um "facto consumado" à custa do património linguístico e da identidade cultural de todos os portugueses.

Assistindo-se já habitualmente a um uso deficiente do Português por parte de políticos e de jornalistas cada vez mais impreparados, registou-se neste processo um "salto qualitativo" para ainda pior, e é possível agora ouvir-se na boca de jornalistas uma pronúncia "modernaça" de certas palavras (como "contato"!), é possível assistir-se ao "primado do vestuário" na pena do legislador, em pleno Diário da República (como expressões do tipo "razões de fato e de direito", "fatos ilícitos" ou "união de fato"!), entre outras fenómenos rocambolescos quotidianos supervenientes a uma "choldra ortográfica" sem precedentes porque exponenciada pela ignorância que adveio da mísera qualidade do ensino em Portugal nas ultimas décadas.

Assiste-se a um "não saber escrever" enxertado noutro "não saber escrever" prévio.

O cenário é pesadelo, quase ubiquitário, e urge pôr-lhe fim o quanto antes, quando, consensualmente, o interesse nacional é que se ensine bem a variante euro-afro-asiática-oceânica da língua portuguesa, em lugar de delapidá-la, de destituí-la das raízes etimológicas que constituem o necessário vínculo "orgânico" do corpo da língua, agregando famílias de palavras e conexões de sentidos.

Se o poder politico não assumir as suas responsabilidades nesta matéria, que sejam os cidadãos assim não representados a fazer valer o conceito de Estado de Direito. Se não nos respeitarmos, quem nos respeitará?

d) A norma ortográfica de 1945 continua a ser respeitada (e a fazer-se respeitar) por entidades e instituições que não se demitiram do seu papel de referência, quer na defesa dos valores culturais (Centro Cultural de Belém, Fundação de Serralves, Casa da Música), quer na manutenção de um prestigio académico posto em causa por uma minoria dos seus membros (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), quer na especial responsabilidade de incumprir directivas ilegais e fazer cumprir activa e rigorosamente a Lei em vigor (2° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, Tribunal do Barreiro). É expectável que a estas atitudes íntegras e corajosas se sigam outras, pois cada cidadão deve começar por si mesmo a mudança que espera ver no seu Pais.

A fundamentação que acabo de expor resulta de uma reflexão própria e de uma síntese pessoa! apoiada, quer em pareceres (jurídicos, linguísticos e outros) que são públicos e foram produzidos por profissionais credíveis e independentes (quase todos eles constantes da "Biblioteca do Desacordo Ortográfico", disponível na Internet), quer em testemunhos públicos de pessoas ligadas aos meios académicos onde o AO90 foi produzido (esses disponíveis no sitio oficial da Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico, também na Internet), quer ainda em informação disponibilizada publicamente pela Assembleia da Republica.

De facto, não posso deixar de referir, com particular gratidão, as perspectivas e todo um diligente trabalho colectivo de organização e comunicação de contribuições, de denúncia de paradoxos e desconchavos, de estimulação do debate neste âmbito, em que consolidei, aprofundei e enriqueci as minhas próprias posições nesta matéria, desde 1986, de que destaco os nomes de Francisco Ferreira de Almeida, Paulo Jorge Assunção, lvo Miguel Barroso, Maria Leonor Carvalhâo Buescu, Miguel Esteves Cardoso, Victor Santos Carvalho, José de Faria Costa, João Roque Dias, António Emiliano, José Gil, António Guerreiro, António de Macedo, Vasco Graça Moura, Teresa Ramalho, Maria Alzira Seixo e Francisco Miguel Valada.

Creia-me uma admiradora de Vossa Excelência, alguém que acompanhou com o maior interesse durante os últimos anos as intervenções públicas desassombradas sobre os problemas do Ensino em Portugal, reveladoras de uma integridade de carácter e de uma inteligência crítica em relação directa com um exercício da Politica no sentido mais nobre desta palavra. Convicta de que a Matemática é estruturante do "saber pensar" a todos os níveis, para as nossas crianças, até mesmo para a estruturação de um pensamento ético, foi com enorme agrado que registei a chegada de um matemático às funções de Ministro, num Ministério tão carenciado de racionalidade e lógica. A admiração que já tinha converteu-se pois, perante a escolha de V. Exa. para assumir as responsabilidades actuais, numa grande esperança, a esperança de que o "saber pensar" conseguisse "saber agir", uma expectativa que creio partilho com muitíssimos outros cidadãos portugueses de todos os pontos do espectro político-partidário.

Certa do bom acolhimento desta missiva, tomo a liberdade de torná-la pública esperando que este posicionamento de cidadã e de encarregada de educação possa contribuir para a salvaguarda de um património colectivo fruto de tantos séculos de Historia e de uma Literatura que tanto nos orgulha. Por entender que esse legado das gerações passadas é pertença das gerações futuras, e que dele urge sermos todos "fiéis depositários" activos, neste contexto tão anómalo que faz recair sobre esta geração uma especial responsabilidade de impor a preservação decente e digna da língua portuguesa, manifesto-me antecipadamente grata pelas diligências que apoiem o direito que a minha filha lnês tem de ser ensinada segundo a norma ortográfica em vigor (sem contacto com o AO90) e subscrevo-me com elevada consideração,

Madalena Homem Cardoso