sábado, 30 de novembro de 2013

O Natal do doutor Estevão

ASSIM que o doutor Estevão foi admitido naquela empresa, entre os que lá trabalhavam, instalou-se uma natural espectativa. Estava-se a meio da década de 80 do século passado, e as exigências da actividade da empresa obrigaram a que se efectuassem algumas admissões, e o doutor Estevão da Várzea foi uma delas. Trazia consigo um notável currículo. Falava fluentemente inglês e francês, algum espanhol, inicialmente tirara um curso de contabilista, depois de regente agrícola, tendo-se finalmente licenciado, primeiro em matemáticas e depois em direito, enfim, tudo habilitações com pouca ou nenhuma relação entre si, porém, as referências que trazia das empresas por onde tinha passado, atestavam a sua grande competência em todas as funções que desempenhara. No dia em que foram feitas as apresentações, toda a gente torceu o nariz. O doutor Estevão parecia uma figura saída de uma banda desenhada. Era magro, de estatura média, andava desengonçado em cima de umas pernas exageradamente arqueadas, vestia-se com roupa amarrotada e desirmanada, que parecia não lhe pertencer, umas vezes uns números abaixo, outras vezes uns números acima, a cabeleira parecia nunca ter visto um pente, encavalitava no nariz uns óculos de lentes grossas, que lhe reduziam os olhos a dois minúsculos pontos negros, e embora se exprimisse com clareza, falava incrivelmente depressa e de forma atabalhoada. Logo houve quem lhe apontasse semelhanças com o actor Woody Allen, embora numa versão para muito pior.

Foi ocupar uma secretária na área administrativa da empresa, um desalinhado "open-space" onde todos conviviam mais ou menos pacificamente, muito embora o decibéis tivessem tendência para subir, quando acontecia todos falarem ao mesmo tempo, cada um nas suas tarefas, mais o retinir dos telefones e as caóticas conversações cruzadas que se entabulavam. O doutor Estevão tinha umas funções um bocado indefinidas, e para ser preciso, era aquilo que se costuma apelidar de um pau para toda a obra, um bombeiro que tanto apagava fogos aqui e ali, nas mais variadas matérias, como ajudava no acertos das folhas de caixa, balancetes contabilísticos, traduções e retroversões, consultor jurídico, aconselhamento na administração corrente, no lançamento de novos produtos, nas dicas e ajudas ao programador do IBM 34, diligências junto dos gerentes bancários e inspectores das finanças, em suma, um homem que tocada quase todos os instrumentos, mesmo sem saber patavina de música. Em poucos meses transformou-se numa espécie de "manda-chuva", intervindo em todos os quintalinhos da empresa, com uma autoridade simplória e descomprometida, desejada e consentida, porque na verdade, resolvia problemas sempre com franqueza e camaradagem, no meio de risadas e dos destemidos "vamos a isso", e quando não sabia, manifestava-o com humildade e pedia conselhos. Passada a fase de "manda-chuva" passou a ser apelidado de "maestro", uma espécie de chefe de orquestra, a que todos recorriam quando era preciso acertar compassos, quando alguém desafinava, as pautas se baralhavam ou as coisas se complicavam. E o doutor Estevão, que ninguém sabia a que horas chegava, mas que acabava sempre por chegar, arquejante e esbaforido, abraçado a montes de papéis e a equilibrar-se nos sapatos cambados, acabava sempre por solucionar, com mais ou menos saber, com mais ou menos arte, com mais ou menos improviso, qualquer imbróglio. E falava desalmadamente, sem lhe faltar o ar, e no meio dos discursos, disparava piadas minúsculas, anedotas e graçolas parvas, rindo histriónica e desajeitadamente dos seus próprios ditos, para logo de seguida mergulhar na solução dos problemas, com ar sério e compenetrado, sempre a empurrar os óculos que continuamente lhe deslizavam pela cana do nariz.

Tinha uma velha carrinha com os bancos traseiros rebatidos, permanentemente estacionada à porta da empresa, e que servia para guardar a bicicleta todo-o-terreno em que habitualmente se deslocava, quando estava bom tempo. Fora isso, andava sempre de táxi. A rir desabridamente, argumentava que era muito mais cómodo e económico usar os táxis, pois livrava-se das revisões e manutenções do velho Opel, não se enervava nem desgastava com as agruras do trânsito e até podia ir adiantando trabalho - quando não deixava papéis esquecidos no banco traseiro, e que invariavelmente eram prontamente devolvidos -, além de que desfrutava do luxo de ter um chauffeur com quem podia entabular conversa, trocar anedotas e saber novidades. A sua carrinha, dizia ele, para além de ser a garagem itinerante da bicicleta, apenas a usava para as grandes distâncias ou para ir às compras do mês. Soube-se que tinha filhos, um par de gémeos, e quando lhe pediram para mostrar as fotografias das crianças, entre duas risadas, foi peremptório: Querem crer, nunca lhes tirei uma fotografia! São muito feios, os meus queridos são muito mais feios do que eu, são tão feios que quando olho para eles fico assustado...

Cada dia trazia sempre novas surpresas. O doutor Estevão tanto podia chegar de fato e gravata e calçado com ténis, como vir de fato de treino e boné, toalha ao pescoço e os habituais sapatos cambados. Quando aparecia assim, tão desconcertadamente ataviado, era certo que tinha começado o dia com uma sessão de jogging, pois cuidava da sua condição física. Que era adepto de desportos radicais, só se veio a saber largos meses depois, quando numa dada segunda-feira não compareceu ao trabalho, e a mulher telefonou a dizer que ele tinha sofrido um acidente no Rio Paiva, quando praticava rafting, e que andavam a ver se o conseguiam encontrar. Arrastado pela corrente, acabou por aparecer a quinze quilómetros do local do acidente, por um pastor que tinha ido dar de beber ao gado. Voltou ao trabalho três ou quatro dias depois, a ostentar ainda algumas nódoas negras, esfoladelas e outras equimoses, e a brandir aquela desculpa: O que é que querem, o rio estava bravo, depois veio um calhau direito a mim e a chalupa virou-se! Vá lá, perdi o remo e o capacete, mas consegui salvar os óculos e o relógio..., seguida de uma risada tonitruante e repenicada, mais um esbracejar a condizer com a caricatural aflição por que tinha passado. Mas isto não é nada! Acrescentou ele. Antes do rafting eu praticava escalada solitária, bem, até ao dia em que fiquei durante três dias, num penhasco do Gerês, pendurado no vazio pelo arnês, com a corda segura apenas por um mosquetão, a mais de cem metros de altura. Não fosse ter passado por ali um praticante de asa delta, que foi dar o alarme, não sei como aquilo teria acabado... Para o bem ou para o mal, coincidência ou não, isto aconteceu-me na mesma altura da aparição do cometa Bowell-Skiff. Há cada coisa!

Mas a sua imagem de marca tinha sobretudo a ver com o calçado, peça que durante um dia de trabalho ia descalçando aqui e ali, nas alturas e locais mais inusitados, ao sabor do incómodo que lhe provocavam. Aplicava a biqueira de um contra o calcanhar do outro e já está. Indiferente aos orifícios que pudesse ter nas peúgas, tanto podia descalçá-los a meio de uma conversa informal, numa ida aos lavabos, no balcão do restaurante onde petiscava, como a meio de uma reunião de administração ou no ambiente austero da sala de um tribunal, onde certo dia, durante uma troca de argumentos, também eles intervalados com comentários, piadas parvas e gargalhadas estereofónicas, a juíza fez questão de o interromper com um: ó senhor doutor, tenha propósitos, ajeite a sua beca, calce-se e veja lá se domina a sua excitação. Invariavelmente, e voltando aos sapatos, libertava-se deles de forma automática e esquecia-se quase sempre de os recuperar. Entretanto, havia sempre alguém ali por perto que lhe dizia: ó doutor, não se esqueça, olhe que os seus sapatos ficaram ali!.

Fora estes episódios sempre diferentes, que emolduravam o dia-a-dia, suplantando a rotina, a actividade da empresa corria de vento em popa. Nunca se tinha trabalhado tanto e com tanto gosto como agora. Fosse graças a factores de conjuntura, como é hábito dizer-se, ou fosse porque o "open-space", por obra e graça do "maestro" Estevão da Várzea, funcionasse como uma equipa coesa e quase perfeita, por vezes como um autêntico e aguerrido grupo de combate, os tempos eram outros, mais risonhos que os de antanho, tendo subido os níveis de produtividade e de boa disposição. Todos se lembram de ter visto o doutor Estevão em peúgas e dedo em riste, a mastigar uma sanduiche de torresmos e a bradar todo esganiçado: a baliza do adversário é ali, aqui ninguém joga à defesa, temos que ganhar o jogo, quero ver todos, mas mesmo todos sem excepção, a jogar ao ataque, a chutar para dentro daquela baliza. E era assim que todos sentiam a causa da empresa como coisa sua, em que ficar de vigília uma noite inteira em frente do fax, à espera da confirmação de uma adjudicação, não era um sacrifício mas sim uma agradável conquista. E isso reflectia-se na facturação, e por acréscimo, numa significativa melhoria dos salários.

Mas, tal como diz o provérbio, não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe. Também naquela empresa começaram a soprar outros ventos, assim que o presidente manifestou o desejo de resignar, passando o testemunho a outro. Se por um lado havia grande sucesso e desafogo económico, por outro, com aquela perspectiva de mudança nos andares cimeiros, começaram a despontar as ambições, sendo a mais notória a do próprio filho do presidente, um jovem que tinha tanto de pedante e intratável, como de autoconvencido, que andava por ali a flanar a sua prosápia e a quem não se reconhecia nenhuma virtude, qualidade ou competência. O presidente sugeriu à família - porque de uma empresa familiar se tratava - que o seu lugar de timoneiro fosse preenchido por alguém com provas dadas e perfil de líder, e sugeriu o doutor Estevão como a sua escolha. Marcou uma reunião com todos os administradores e directores, na qual seria oferecido ao doutor Estevão o apetecido lugar. Diz quem assistiu à entrevista que o doutor Estevão, logo que se sentou, descalçou os sapatos, aconchegou o ambiente com duas ou três piadas rápidas, mas depois falou sem titubear, com a sua conhecida desenvoltura. Quando o presidente, sob o olhar contrariado do filho, lhe ofereceu o lugar de presidente, aclarou a garganta, desdobrou um insólito gracejo e logo acrescentou que o seu terreno de eleição eram os múltiplos campos de batalha, não a grande guerra propriamente dita, em resumo, era mais um táctico que um estratega. Esse objectivo, disse ele, deixava-o aos fidalgos, aos catedráticos. Não sou pessoa - disse ele - que se afoite a dar passos maiores que a perna, e tenho-as bem compridas, como todos sabem. Mencionou que o apelidavam de "maestro", aliás, não podiam ter escolhido melhor nome, e por isso mesmo, sabia que podia ser um bom maestro, mas que talvez nunca pudesse vir a ser um bom compositor, um verdadeiro criador. Deixava isso a quem se sentia entusiasmado e vocacionado para tal, às pessoas mais ambiciosas e mais bem relacionadas, coisa que ele não era. A sua recusa marcou o fim da entrevista. O filho do presidente ajeitou a gravata, abotoou o casaco, passou a mão pela melena e deitou um sorriso rasgado à audiência, como quem diz, estão a ver, eu não dizia, o gajo não passa de uma fraude, de um plebeu desqualificado, incompetente e sem futuro.

As coisas seguiram o seu curso. O velho presidente recolheu-se à sua quinta de Ourém e o filho ocupou o cadeirão de chefe máximo, começando a fazer profundas transformações na empresa. Compartimentou o "open-space" em secções autónomas separadas por biombos, admitiu para as chefias alguns dos seus amigos, fez ajustamentos seguidos de reajustamentos, dispensou pessoal ao abrigo de uma política de redução de custos, seguidas de mais umas quantas patetices desprovidas de sentido. De todas estas transformações resultou que o anterior desafogo económico da empresa se começou a contrair, começando a perderem-se clientes, encomendas e contractos. Em resposta a isso vieram mais cortes, mais despedimentos, mais episódios de administração descontrolada, ao passo que ao abrigo das novas técnicas de gestão que começavam a despontar, nomeadamente o "outsourcing", foi contratado um escritório de contabilidade e uma empresa de informática, que deixaram ainda mais depenada a fraca tesouraria. E não havia doutor Estevão da Várzea que conseguisse travar aquele mergulho no abismo, para mais, remetido como estava agora a uma quase simbólica função de assessor da administração, ao abrigo da qual nunca foram pedidos os seus préstimos, e com todo o pessoal expressamente proibido de lhe pedir conselho sobre que matéria fosse. Pelo meio, por portas e travessas, alguém começou a fazer constar que havia dúvidas quanto à autenticidade das suas habilitações académicas.

Com isto o caldo entornou-se e o doutor Estevão da Várzea não esperou pela desconsideração seguinte. Uma tarde sentou-se à secretária, descalçou os sapatos, massajou os pés, meteu papel na máquina e escreveu uma carta a pedir a demissão, respeitando o prazo legal para o efeito que, coincidência ou não, o libertava da empresa exactamente quatro dias antes do Natal. Assinou a carta, tirou uma fotocópia para si e enviou o original para a administração. No dia aprazado, encheu a pasta com os seus poucos pertences, despediu-se de todos os que tinham trabalhado com ele e saiu. Tinham passado quatro anos e meio desde que ali chegara da primeira vez, mas nem olhou para trás, para ver os rostos dos que estavam a contemplá-lo por trás das vidraças. Meteu-se no sua velha carrinha Opel e preparou-se para ir passar o Natal junto da mulher e dos seus queridos gémeos, mais feios que o próprio pai.

Na manhã da véspera de Natal, dia 24 de Dezembro, chegou â empresa uma encomenda embalada num caixote estreito, com umas insólitas dimensões, dirigida ao presidente da administração. Sua excelência, convenientemente avisada e cheia de curiosidade, desceu até ao rés-do-chão e pediu para desembalarem a coisa. Tiradas as cintas e despregadas as tábuas, e perante os olhares incrédulos dos empregados que entretanto se tinham começado a juntar, lá dentro vinha uma bicicleta usada, modelo todo-o-terreno, enfeitada com uma coroa natalícia, e com ela uma missiva dirigida a sua excelência, e que rezava assim: Como prenda e desejos de um feliz Natal, aqui lhe deixo esta bicicleta para que com ela possa ir dar uma grande volta. Estevão da Várzea.

sábado, 2 de novembro de 2013

Intervenção do deputado do PCP, João Oliveira, na Assembleia da República em 1 de Novembro de 2013

«Senhora Presidente,
Senhoras e senhores Deputados,
Senhoras e senhores membros do Governo,

Ontem, ao fim de 8 horas de debate, veio da bancada do CDS uma referência paradigmática na discussão deste Orçamento do Estado: desde 1943 que o Estado não apresenta um saldo primário positivo.

A gravidade destas palavras comprova que o que aqui discutimos não é apenas a diferença entre despesas e receitas do Estado ou de pequenas opções que se façam em cada uma dessas dimensões. O que discutimos hoje é um projeto político para o país, para a vida de cada um daqueles que todos os dias levantam este país.

O país que o Governo e a maioria propõem com este Orçamento do Estado para 2014 é pela própria maioria comparado com esse Portugal de 1943, um país com uma economia de guerra, um país política e socialmente esmagado pela pobreza e o atraso impostos por Salazar.

Não avaliando o acerto das contas feitas na comparação, compreendemos que seja esta a referência da maioria.

O país vive, de facto, há três anos com uma economia de guerra, ainda que não se dispare um tiro. Ao povo foi imposto um verdadeiro esforço de guerra com o esmagamento de direitos, o roubo de salários e pensões, o desemprego, a pobreza e a emigração.

E o que este orçamento anuncia é que essa guerra não tem fim próximo. O projeto político do Governo não está plenamente concretizado nem é temporário.

Apesar do empobrecimento generalizado com que reduziu os custos do trabalho e das condições que já criou para que a riqueza nacional se concentre cada vez mais nos cofres de um punhado de grupos económicos e financeiros, o Governo quer um Estado configurado à medida desses interesses.

Um Estado que assegure esse controlo da riqueza por uma meia dúzia de poderosos e que tenha condições de impor a exploração de quem trabalha, negando os direitos económicos, sociais e laborais aos trabalhadores e ao povo.

Um Estado incompatível com a nossa Constituição e a democracia.

E são o próprio Governo e a maioria que afirmam que esse não é um projeto conjuntural.

De cada vez que Governo e maioria afirmam que não se podem desperdiçar os sacrifícios já feitos, que com a suposta saída da troica e o fim do Pacto não podemos voltar ao desgoverno em que vivíamos antes, o que querem dizer é que os cortes são para manter, que o desmantelamento das funções sociais do Estado é para continuar, que o agravamento da exploração e das desigualdades é o verdadeiro desígnio nacional da sua política.

Senhora Presidente,
Senhoras e senhores Deputados,
Senhoras e senhores membros do Governo,

O debate deste Orçamento do Estado para 2014 confirmou o falhanço em todos os objetivos que justificaram a assinatura do Pacto da troica e comprovou que esses objectivos eram apenas a fachada para um programa político de fundo que os subscritores do Pacto continuam a querer esconder.

Há dois anos e meio o Pacto era assinado em nome da redução da dependência externa, do endividamento e do défice, em nome de reformas estruturais inadiáveis, em nome do combate à recessão e ao desemprego.

No debate deste orçamento confirmou-se que nenhum desses objetivos foi atingido sem que isso tenha sido motivo de preocupação para o Governo.

Teremos em 2014 um país mais dependente do exterior em termos financeiros e em termos económicos.

O Governo e a maioria que defendiam o Pacto para pôr fim ao endividamento, propõe-se continuar a aumentar a dívida em 2014 para mais de 200.000 milhões de euros.

Depois de sucessivas revisões por incumprimento dos limites do défice acordados com a troica, o Governo propõe para 2014 um limite de 4%, objetivo tão irrealista que ontem, na falta de qualquer outro argumento, acabou por ser sustentado pela senhora Ministra das Finanças apenas com a sua própria profissão de fé.

Em matéria de reformas estruturais, também neste debate se confirmou que a única reforma que o Governo pretende e sabe fazer é despedir, cortar, empobrecer, desmantelar, destruir.

A reforma do Estado, apresentada pelo Vice Primeiro-Ministro Paulo Portas em letra de tamanho 14, espaçamento duplo e muito espaço entre parágrafos, é exemplo disso. De ideias novas, nada, mas muita repetição de medidas já tomadas e em curso ou de propostas velhas sobre a destruição do Estado democrático que constam há dezenas de anos dos programas eleitorais e propostas de revisão da Constituição de PSD e CDS.

Neste debate orçamental foi igualmente reveladora a discussão das perspectivas económicas e do desemprego.

Como é que o Governo sustentou a perspectiva de aumento do PIB em 0,8% inscrita do Orçamento do Estado? Com dificuldade, teimosia e vacuidade.

Com a dificuldade de quem sabe que todos os indicadores económicos, até os inscritos no Orçamento do Estado, fazem duvidar dessa previsão. Com a insuportável teimosia de quem continua a não querer considerar os efeitos recessivos da austeridade que em 2014 será agravada. E com a vacuidade de quem olha para a economia à espera de milagres, como faz o Ministro da Economia, Pires de Lima.

O Ministro da Economia, aliás, não deixou de abrilhantar a discussão cumprimentando o patrão com o chapéu dos outros, recolhendo como méritos do Governo o esforço feito por muitos empresários, particularmente pequenos e médios empresário, e a melhoria registada pelo INE na atividade económica do segundo trimestre.

Esqueceu-se foi de dizer que a esses empresários vai aumentar em 2014 o Pagamento Especial por Conta em 75%.

Esqueceu-se de dizer que o INE afirma que foi o aumento da procura interna o fator responsável pela ligeira melhoria económica registada no segundo trimestre, ao contrário do que faz o Governo que insiste na prioridade ao mercado externo e às exportações.

Esqueceu-se também, convenientemente, de estabelecer a relação entre esse aumento da procura interna e o acórdão do Tribunal Constitucional que mandou devolver o subsídio de férias que o Governo queria expropriar.

Quanto ao desemprego, nada de diferente.

Apesar de questionado e confrontado pelo PCP, o maior problema social que o país enfrenta mereceu ao Governo apenas notas de rodapé na discussão.

Sem assumir nenhuma preocupação com o drama social, pessoal e familiar de quem quer trabalhar e não tem trabalho nem salário, o Governo sustentou as suas próprias previsões de que o desemprego continuará a aumentar, atingindo 17,7% em 2014. Este é não só o número que o Governo prevê mas a dimensão do desemprego que o Governo deseja.

O Governo faz do desemprego uma peça central da sua estratégia porque sabe que sem este nível de desemprego teria muito mais dificuldades em impor cortes de salários, aumentos de horários de trabalho, despedimentos. E também por isso quer continuar a contribuir ativamente para o desemprego despedindo em 2014 mais 30.000 trabalhadores da Administração Pública.

Quis o destino e a conferência de líderes que se fizesse o encerramento deste debate orçamental no extinto feriado do Dia de Finados, o feriado de Todos os Santos.

A extinção de feriados foi justificada pelo Governo com o prejuízo para o país de tantos feriados que impediam a produção, com a necessidade de eliminar esses obstáculos para que o país pudesse produzir mais.

Este Governo, tão célere a eliminar feriados para que se produzisse mais, não se preocupa no entanto com o desaproveitamento de capacidade produtiva que resulta do desemprego.

Com este nível de desemprego promovido pelo Governo, em cada seis dias de trabalho há o equivalente a um dia feriado à custa dos desempregados.

Senhora Presidente,
Senhoras e senhores Deputados,
Senhoras e senhores membros do Governo,

O Governo PSD/CDS sabia desde o início que não seria pacífica a concretização de uma política que, para satisfazer os interesses do capital financeiro e dos grupos económicos, impunha aos trabalhadores medidas brutais de agravamento da exploração, de extorsão de rendimentos, de aumento de impostos e empobrecimento generalizado, de desmantelamento e reconfiguração do Estado à medida dos interesses do Capital.

O Governo PSD/CDS sabia que o programa político que tinha para executar enfrentaria a resistência e a luta dos trabalhadores e do povo e, por isso, tem desenvolvido e aprofundado o argumentário de chantagem, mistificações e falsidades com que ao longo dos últimos dois anos tem procurado responder à intensificação e desenvolvimento da luta dos trabalhadores e do povo.

Este Orçamento do Estado mantém o país convenientemente à beira do desastre económico e social para que, a coberto de um designado segundo resgate, programa cautelar ou qualquer outra designação, se mantenha a mesma política que hoje se aplica em nome da troica.

Cada corte na despesa referido neste debate é um corte na democracia e é contra esses cortes e em defesa da democracia que lá fora, às portas desta Assembleia da República, se reúnem milhares de manifestantes exigindo um rumo diferente para o país.

Com este Orçamento do Estado votado no Dia de Finados, ninguém estranharia que os sinos dobrassem à hora da votação pela democracia que daqui sairá mutilada. E poderíamos até responder ao povo que lá fora exige democracia com a frase que inspirou Hemingway para o título de uma das suas obras: “não perguntes por quem os sinos sobram, eles dobram por ti”.

Mas nós comunistas preferimos o desenlace da história e confirmaremos, também neste debate orçamental, que enquanto houver quem lute há esperança.
Disse.»

sábado, 18 de maio de 2013

A Síndrome da Presunção e a Doença Mental na Política

Artigo de Pedro Afonso, Médico Psiquiatra, publicado em 16/Maio/2013 no jornal PÚBLICO

Muitos de nós já se terão questionado: será que o poder transforma as pessoas, alterando-lhes a personalidade, ou será que aqueles que chegam ao poder já apresentam traços ou características de doença psiquiátrica? É provável que ambas as hipóteses sejam verdadeiras, senão vejamos: um estudo (Davidson et al.) publicado em 2006 na revista Journal of Nervous and Mental Disease, após uma revisão de fontes biográficas de presidentes dos EUA entre 1776 e 1974, mostrou que 18 (49%) preencheram critérios que sugeriam doença psiquiátrica. Neste caso, depressão (24%), ansiedade (8%), perturbação bipolar (8%) e alcoolismo (8%) foram as doenças mais frequentemente reportadas. Também há vários relatos de que Winston Churchil sofria de depressão, a que chamava "o cão negro". Existem ainda inúmeros elementos biográficos que levam a suspeitar que, por exemplo, Mussolini, Mao Tsetung, Khrustchov e Saddam Hussein sofriam de doença bipolar.

Em 2009, num artigo publicado na prestigiada revista Brain, David Owen, médico e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros inglês, juntamente com o psiquiatra Jonathan Davidson, defenderam a existência de uma doença psiquiátrica, originada pelo exercício do poder, designada por "síndrome da presunção" (Hubris syndrome). Segundo estes autores, esta síndrome, que partilha elementos com o narcisismo e a psicopatia, corresponde a um padrão de comportamento provocado pela exposição a um cargo de poder por um período variável de um a nove anos. Os sintomas identificados são vários: perda de contacto com a realidade, predisposição para ver o mundo como um lugar para a auto-glorificação através do uso do poder, preocupação exagerada com a imagem e a apresentação, forma messiânica de falar acerca do que estão a fazer, utilização recorrente do "nós" em tom majestático, identificação de si próprios (ideias e pensamentos) com o Estado, como se fossem um só, excesso de autoconfiança com desdém perante os conselhos ou críticas dos outros, assumir apenas responsabilidade para um tribunal superior (História ou Deus), ao mesmo tempo que reitera a crença de que será recompensado nesse julgamento.

O ambiente de poder que rodeia a maior parte dos chefes de governo tem um impacto significativo sobre estas pessoas, mesmo as mais estáveis psiquicamente, uma vez que deixam de ter uma vida normal. Vivem muitas vezes em casas sumptuosas do Estado, rodeados de um séquito de aduladores, têm carros com motorista, seguranças e deslocam-se em ambientes protegidos: de uma suite VIP de um aeroporto para um palácio governamental, ou para um fórum com a elite empresarial. Ora tudo isto dá um nível de vida e um afastamento dos problemas do dia-a-dia que só algumas pessoas muito ricas podem igualar. Mas mais importante é que este estilo de vida origina ao líder político um grande isolamento. Por conseguinte, este começa a acreditar que não é igual aos outros homens. Fica emerso num mundo de ideias geradas apenas por si próprio, e aos poucos, sem se aperceber, vai perdendo o contacto com o mundo real.

A intoxicação pelo poder é um caminho que nem todos os indivíduos têm capacidade para neutralizar. Muitos acabam por ultrapassar a fronteira entre a decisão competente e a incompetência presunçosa. Os políticos, tal como os médicos, têm a vida das pessoas que governam nas suas mãos. Nalguns casos a responsabilidade pode ser ainda maior, já que podem decidir se colocam em risco a vida dos seus cidadãos. Por exemplo, podem decidir subtrair os rendimentos das pessoas, através dos impostos, remetendo os mais frágeis para a asfixia da pobreza; podem criar um clima de insegurança e medo, roubando a esperança no futuro a gerações inteiras; podem cobardemente incentivar a emigração ou de forma inábil obrigarem as pessoas a viver resignadamente num país onde floresce a miséria psicológica.

Importa sublinhar que a síndrome de presunção é um tema controverso e não surge, pelo menos para já, nos manuais de psiquiatria. Mas é curioso constatar que facilmente podemos identificar algumas das características descritas nalguns políticos portugueses. Seja como for, uma das formas mais eficazes de evitar os efeitos devastadores dos políticos presunçosos é através da detecção precoce dos sinais de "intoxicação pelo poder", tais como: a crença de que o sofrimento de um povo corresponde a lamechices, a utilização obsessiva de agências de comunicação e de eventos organizados para auto promoção, a preocupação excessiva com a imagem, a tentativa de controlo da comunicação social, o desdém pelos adversários políticos, a teimosia e a obstinação, o recurso a retóricas políticas extravagantes e enganadoras, nas quais surgem frequentes contradições, e a persistência perversa numa política que comprovadamente não funciona.

Tal como nas psicoses, os afectados pela síndrome da presunção não reconhecem "estar doentes", já que para eles isso é um sinal de fraqueza. Ou seja, raramente se demitem, devendo por isso serem demitidos. Para bem da sociedade e dos governantes afectados, os médicos que descreveram esta síndrome afirmam que ela tem cura, já que é propensa a desaparecer com o afastamento do poder. Finalmente, e citando Chesterton, a perfeita autoconfiança não é apenas um pecado; a perfeita autoconfiança é uma fraqueza. Os homens que acreditam "demasiado" em si mesmos estão todos fechados nos manicómios.

domingo, 10 de março de 2013

ROTEIROS VII - PREFÁCIO - Aníbal Cavaco Silva

UM PRESIDENTE EM TEMPOS DE CRISE 

Uma crise anunciada 

Nos últimos dois anos, as palavras “crise”, “troika” e “austeridade” entraram no vocabulário quotidiano dos Portugueses, surgindo com frequência crescente na linguagem da comunicação social, dos agentes políticos e sociais e, bem assim, dos comentadores e analistas da realidade nacional. 

No início de 2011, o País chegou a uma situação de emergência económica e financeira. Era flagrante a total impossibilidade de assegurar o normal financiamento do Estado e da economia. O Governo viu-se obrigado, em abril desse ano, a formalizar um pedido de assistência financeira à Comissão Europeia e ao Fundo Monetário Internacional, entidades que instituíram a chamada “troika”, uma missão tripartida integrada por técnicos da Comissão Europeia, do Fundo Monetário Internacional e do Banco Central Europeu, com vista a analisar, acompanhar e avaliar a situação económica e financeira de Portugal.

Nos termos do acordo celebrado com a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional, Portugal recebia, a título de empréstimo, 78 mil milhões de euros, ao longo de 3 anos, e comprometia-se a executar um vasto e exigente programa de ajustamento visando reduzir o défice das contas públicas, melhorar a competitividade da economia e reforçar a estabilidade do sistema financeiro. Do programa faziam parte medidas que impunham pesados sacrifícios às famílias portuguesas, como a redução dos salários da função pública e das pensões, aumentos de impostos e de preços de serviços públicos e uma diminuição das prestações e apoios sociais. 

O Governo comprometeu-se igualmente a levar a cabo um programa de privatizações e de reformas estruturais, em particular nos domínios do mercado laboral, dos sistemas de saúde e de justiça, do mercado da habitação e do setor empresarial do Estado. 

A execução do programa de assistência financeira, pelos desafios que colocava e pelos sacrifícios que impunha, tornou-se um elemento de grande exigência para todos os Portugueses, mas interpelou, acima de tudo, os agentes políticos e o seu sentido de Estado. 

Da parte do Presidente da República, exige-se, por um lado, um conhecimento rigoroso da dimensão e das razões da crise económica e financeira que atinge o País e das restrições a que está sujeito e, por outro, uma noção precisa das linhas de rumo e de orientação estratégica para a economia nacional que permitam encarar o futuro com realismo e esperança. 

A obediência a uma cultura de responsabilidade impõe, além disso, que o Presidente da República não se deixe influenciar pelo ruído mediático ou pelas pressões de grupos ou corporações. O Presidente deve atuar de forma ponderada e sensata, com equilíbrio e racionalidade, estudando os novos e complexos dossiês que emergem do programa de assistência financeira. Não pode deixar-se arrastar por pulsões emocionais ou afetar pelas tensões que sempre emergem dos tempos de crise. 

Por experiência própria, acumulada ao longo de dez anos como Primeiro-Ministro e após um mandato presidencial de cinco anos, sei, como poucos, que existe uma relação inversa entre o protagonismo mediático do Presidente da República e a sua influência efetiva sobre o processo político de decisão. Os que cedem à tentação da visibilidade fácil e da vaidade efémera acabam fatalmente por perder margem de manobra e capacidade de interlocução junto dos diversos agentes políticos e sociais, os quais, em situações de crise, se colocam frequentemente em posições de antagonismo e conflito, o que reclama uma intervenção arbitral, acrescida mas discreta, do Presidente da República. 

Em suma, sempre guiado pelo critério do superior interesse nacional, fui chamado a exercer o princípio da magistratura ativa que eu próprio tinha definido, em campanha eleitoral, como correspondendo a uma intervenção do Presidente da República que se intensifica em função das necessidades do País, nomeadamente em momentos de emergência social e económica. 

Em primeiro lugar, há que ter presente o diagnóstico, saber como chegámos a uma situação para a qual, em devido tempo, alertei os Portugueses. A principal razão da crise portuguesa reside na acumulação insustentável de desequilíbrios das contas externas – entre 2005 e 2010, o défice anual foi, em geral, superior a 9 por cento do PIB – e no consequente aumento do endividamento do País para com o estrangeiro e do respetivo encargo de juros. O saldo devedor da nossa Posição de Investimento Internacional, que corresponde grosso modo ao grau de endividamento líquido da economia para com o exterior, subiu de 67,4 por cento do PIB, no fim de 2005, para 107,2 por cento, em 2010. 

Na base destes desequilíbrios – traduzidos na vulgar expressão “Portugal vive acima das suas possibilidades” – encontrava-se o excesso de endividamento do Estado, das empresas e das famílias, e a perda de competitividade externa da nossa economia. 

A partir de maio de 2011, a condução da política económica passou a estar condicionada pela necessidade de cumprimento do programa de ajustamento económico e financeiro, que se tornou ainda mais imperiosa perante a impossibilidade total de acesso do Estado, dos bancos e das empresas ao financiamento nos mercados internacionais. 

Portugal não podia – e não pode – deixar de honrar os compromissos assumidos com as instituições internacionais. Desde logo, porque, nos termos do acordo celebrado, a avaliação trimestral positiva da execução do programa é condição necessária para o desembolso das sucessivas parcelas do empréstimo, sem as quais o Estado não conseguiria satisfazer os seus encargos. 

A ideia, defendida por alguns, de que Portugal poderia, unilateralmente, decidir não cumprir os compromissos assumidos com a “troika” e promover uma restruturação da dívida pública, envolvendo uma redução do seu valor nominal, ignora os efeitos extremamente negativos dessa opção. 

Se acaso enveredássemos por esse caminho, agravar-se-ia seriamente a situação do sistema bancário português, assim como de outros investidores institucionais; desvalorizar-se-ia o valor das empresas e de outros ativos nacionais; diminuiria a capacidade de Portugal para defender os seus interesses no plano externo; deteriorar-se-iam drasticamente a imagem, a credibilidade e a reputação externas do País, com prejuízo para as nossas exportações, para a captação de investimento estrangeiro e para a internacionalização da economia; e o Estado, as empresas e os bancos portugueses seriam afastados, por vários anos, porventura décadas, dos mercados financeiros internacionais. 

Portugal deixaria de ser um Estado que honra os seus compromissos, que cumpre a palavra dada. A partir desse momento, que Estados ou organizações internacionais iriam confiar em nós? Os efeitos negativos para o Estado português não se limitariam aos domínios económicos ou financeiros. No plano das relações externas, no diálogo bilateral ou multilateral, na cooperação militar, a nossa posição seria comprometida e o nosso peso negocial diminuiria substancialmente. A descredibilização não afetaria apenas o Estado mas também as instituições privadas, como os bancos ou as empresas, e até os cidadãos individualmente considerados. Os potenciais investidores olhariam o País como um lugar onde os valores da confiança e do respeito pelos compromissos estariam ausentes, as nossas empresas teriam dificuldades acrescidas no estabelecimento de parcerias com as suas congéneres de outros países, os cidadãos teriam, nas suas vidas profissionais e pessoais, a marca de serem oriundos de um Estado que fora ajudado financeiramente mas que, na altura decisiva, se eximira às obrigações que voluntariamente havia assumido. 

Por outro lado, a situação de emergência financeira a que o País chegou, em resultado da trajetória insustentável do endividamento externo, impôs como linhas prioritárias de orientação estratégica o aumento da afetação de recursos à produção de bens e serviços que concorrem com a produção estrangeira (ou seja, bens e serviços transacionáveis), a melhoria da competitividade das nossas empresas e a conquista de novos mercados. 

Esta orientação exige a redução do défice do setor público, incluindo o setor empresarial do Estado, e a melhoria da qualidade das políticas públicas, de modo a libertar recursos para a produção de bens e serviços transacionáveis, a aumentar a eficiência no funcionamento da nossa economia e a reforçar a confiança dos investidores e dos mercados. A redução do défice público, mais do que um fim em si mesmo, constitui um meio para corrigir os desequilíbrios externos e a falta de competitividade da economia portuguesa. 

Convém recordar que os défices das contas públicas de 2009 e 2010 – respetivamente 10,2 por cento e 9,8 por cento do PIB – violavam as regras de disciplina orçamental a que Portugal se encontra sujeito como membro da União Europeia. A trajetória insustentável da dívida pública (que, na primeira década do século XXI, subiu de 50 para 93,5 por cento do PIB), a que acrescia a dívida do setor empresarial do Estado, suscitava dúvidas crescentes aos mercados quanto à capacidade futura do País para cumprir as suas responsabilidades de pagamento de juros e de reembolso. 

O acordo de assistência financeira, celebrado em maio de 2011, fixou metas anuais muito precisas e exigentes para a redução do défice público, de modo a que este atingisse um valor inferior a 3 por cento do PIB em 2014, e elevou-as, de resto, à categoria de indicadores decisivos para avaliação do cumprimento do programa de ajustamento. 

O objetivo da sustentabilidade do endividamento externo impôs também, como orientação prioritária, a valorização e o estímulo da iniciativa privada. É nas empresas que reside o potencial de investimento vocacionado para o setor dos bens transacionáveis e a força dinamizadora das exportações, para além da capacidade de criação de emprego. Daí ser igualmente muito relevante a atração de investimento estrangeiro, pela possibilidade que oferece de expandir as exportações e reduzir o nível de endividamento externo. 

Os compromissos assumidos perante as instituições internacionais, que foram apoiados por um amplo consenso político-partidário, correspondente a 90 por cento dos Deputados à Assembleia da República, definem o quadro que, desde maio de 2011, serve de referência para a ação dos poderes públicos, incluindo a magistratura presidencial, nos planos externo e interno. 

A ação presidencial no plano externo 

A partir de meados de 2011, o programa de assistência financeira definido com a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional passou a influenciar decisivamente a minha ação no plano externo. 

Assim aconteceu nas dezenas de encontros que mantive com Chefes de Estado e outros destacados dirigentes políticos de países da União Europeia e com altos responsáveis de instituições internacionais. Pelos seus poderes de decisão ou de influência, era do interesse nacional que dispusessem de informação correta sobre a situação económica, social e política portuguesa, sendo ainda essencial transmitir-lhes mensagens relevantes sobre a execução do programa de ajustamento que o País estava a concretizar. 

Antes de mais, era importante que os diversos Estados europeus soubessem que as autoridades portuguesas estavam firmemente determinadas a cumprir, de forma rigorosa, os compromissos que tinham sido assumidos com as instâncias internacionais. De igual modo, deveriam conhecer o progresso verificado na realização dos objetivos definidos, em particular na redução do desequilíbrio das contas com o exterior e das finanças públicas, na concretização das reformas dirigidas à melhoria da competitividade externa e à estabilidade do sistema financeiro, e no processo de privatizações. 

Esta foi, numa primeira fase, uma mensagem imprescindível para desfazer dúvidas e equívocos, para vencer preconceitos e ultrapassar as desconfianças dos mercados, dos investidores e de alguns agentes políticos europeus quanto à vontade e à capacidade de Portugal para corrigir os desequilíbrios que o afetavam. 

Mas era igualmente importante dar a conhecer os pesados sacrifícios impostos aos Portugueses e, por outro lado, valorizar o consenso entre as principais forças políticas relativamente à execução do programa de ajustamento, assim como o consenso social, envolvendo organizações patronais e sindicais, que fora alcançado para a realização das reformas estruturais. Além disso, fazia questão de sublinhar o sentido de responsabilidade revelado pelo povo português no cumprimento de um programa de grande exigência. 

Interessava também revelar os efeitos negativos da execução do programa de ajustamento: a queda da produção e do investimento e o aumento do desemprego, superiores aos que tinham sido inicialmente previstos, a escassez e o elevado custo do crédito para as empresas e o alastrar de situações de pobreza. Tal como havia que demonstrar o impacto negativo da crise na Zona Euro, em particular da situação vivida em Espanha, um verdadeiro choque assimétrico para Portugal, dada a dimensão específica das relações comerciais e dos fluxos turísticos existentes com o país vizinho. Havia também que assinalar os sinais de cansaço revelados pelo povo português relativamente às sucessivas medidas de austeridade e o receio de que o País caísse num círculo vicioso, em que a queda da produção fosse seguida por mais austeridade orçamental, a que se seguiria nova queda da produção e assim sucessivamente. 

Era essencial evidenciar estes aspetos, não apenas para sensibilizar os nossos interlocutores a adotarem uma atitude mais positiva em relação a Portugal, mas também para reforçar a noção de que o sucesso dos programas de ajustamento português e irlandês não interessa apenas aos dois países, mas à União como um todo e a cada um dos seus membros em particular. 

Nas declarações e intervenções que tenho proferido sobre a política europeia e a crise do Euro, e que têm constituído uma outra vertente da minha atuação no plano externo, venho defendendo as políticas e as orientações europeias que mais se adequam aos interesses nacionais e criticando aquelas que nos são adversas, procurando sempre enquadrar as posições assumidas no interesse comum europeu e não deixando de sublinhar o quanto Portugal valoriza o projeto de integração, que garantiu um ciclo de paz e prosperidade sem precedentes na história deste continente. 

Sublinhei, por diversas vezes, a urgência de uma atuação firme a nível europeu visando a estabilidade da Zona Euro, o reforço da confiança na moeda única e o aprofundamento da União Económica e Financeira. 

Nesse sentido, defendi um papel mais ativo do Banco Central Europeu, agindo como emprestador de último recurso, à semelhança da Reserva Federal dos Estados Unidos, do Banco de Inglaterra e do Banco do Japão. Um Banco Central Europeu firme e declaradamente disponível para intervir, de forma ilimitada, no mercado secundário da dívida soberana dos países solventes da Zona Euro que enfrentem problemas de liquidez, mas que conduzam políticas orçamentais de sustentabilidade das finanças públicas e realizem reformas visando a melhoria da competitividade das suas economias, como é o caso de Portugal. Assegurar a integridade da política monetária europeia e eliminar o risco da reversibilidade do euro deve ser uma responsabilidade permanente do Banco Central Europeu. 

A intervenção do Banco Central Europeu no mercado secundário da dívida soberana portuguesa contribuiria para a redução dos custos de novas emissões de dívida e aplanaria o caminho para o regresso do País ao mercado internacional de títulos de dívida a longo prazo em condições mais favoráveis. 

Insisto, desde há muito, que a crise da Zona Euro não se resolve apenas com a imposição de políticas de austeridade orçamental e com a aplicação de sanções aos Estados-membros. É indispensável que, em paralelo, a União Europeia adote uma agenda de crescimento económico e criação de emprego. Sem ela, os custos da consolidação orçamental em países sujeitos a programas de ajustamento, como Portugal, correm o risco de se tornarem social e politicamente insustentáveis. 

Na conferência que realizei no Instituto Universitário Europeu, em Florença, fui particularmente incisivo na defesa de um papel mais ativo do Banco Central Europeu e de uma agenda europeia vocacionada para o crescimento económico e para a criação de emprego. Em Madrid, ao intervir na cerimónia em que recebi o prémio Nueva Economía Fórum, voltei a sublinhar estas ideias. 

Este ponto ganhou uma relevância crescente para Portugal à medida que se avançava na execução do programa de ajustamento e se tornava evidente a necessidade de associar ao processo de consolidação orçamental elementos favoráveis ao crescimento económico e à criação de emprego. Nas atuais circunstâncias, parte destes elementos deveria provir de decisões tomadas a nível europeu – tais como a reafetação de fundos estruturais comunitários, o aumento de empréstimos do Banco Europeu de Investimento às empresas, a revisão dos critérios de cálculo dos capitais exigidos aos bancos por parte da Autoridade Bancária Europeia, ou a redução das taxas de juro das obrigações convertíveis emitidas em operações de recapitalização dos bancos – e de uma coordenação das políticas económicas dos Estados-membros orientada para a adoção de políticas mais expansionistas por parte daqueles que têm posições externas superavitárias. 

Não por acaso, logo na comunicação que fiz ao País, em 6 de maio de 2011, a propósito do acordo de assistência financeira, havia afirmado que “É essencial que, na execução do acordo alcançado, seja encontrado espaço para duas preocupações cruciais para o nosso futuro: a justiça social e o crescimento da economia”. 

Mais recentemente, tenho utilizado as oportunidades oferecidas pelos contactos internacionais para defender a flexibilização das competências do Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira no apoio aos países que enfrentam problemas de liquidez, assim como da concretização de um novo passo na integração financeira que, estou certo, trará benefícios para Portugal. Refiro-me à criação de uma União Bancária Europeia, incluindo não só a instituição do mecanismo único de supervisão da Zona Euro, decisivo para separar o risco da dívida bancária do risco da dívida soberana, e que deve ser rapidamente posto em prática, mas também a criação de um mecanismo comum de garantia de depósitos e de um fundo de resolução de crises bancárias, para que os custos da má gestão dos bancos não recaiam sobre os contribuintes. 

Nas minhas intervenções e declarações sobre política europeia, fui particularmente crítico quer dos atrasos no reconhecimento, por parte de vários Estados-membros, da natureza sistémica da crise do euro, associada ao grau de interdependência económica entre os países e a efeitos de contágio, quer das demoras na aprovação de uma agenda de crescimento económico e na própria passagem à prática das decisões de combate à crise financeira tomadas pelo Conselho Europeu 

O euro constitui um pilar decisivo da construção europeia e o seu fracasso não seria só prejudicial para Portugal ou para países em situação idêntica à nossa. O fracasso do euro poria em causa o mercado interno e a política europeia de coesão social, alimentaria protecionismos de cariz nacionalista e enfraqueceria a posição da Europa na cena internacional. O insucesso da moeda única significaria que falháramos na preservação de um projeto que representa um dos alicerces da União. 

Consciente desses riscos, tendo bem presente que a crise do euro é sinónimo de crise da Europa, nas minhas intervenções não poupei críticas aos egoísmos nacionais revelados por alguns Estados, à deriva intergovernamentalista no funcionamento da União, em detrimento do método comunitário, e à emergência de diretórios de países que se sobrepõem às instituições comunitárias e limitam a margem de manobra destas últimas. O método comunitário é, indiscutivelmente, aquele que melhor defende o projeto de uma verdadeira União Europeia, concebida como algo maior, muito maior do que um mero somatório de Estados-membros. 

A pedagogia sobre a situação económica portuguesa, assim como sobre a execução do programa de assistência financeira deve estender-se para além do círculo dos países da União, abrangendo, em particular, os Estados que detêm maior peso nas decisões do Fundo Monetário Internacional e na formação da opinião dos investidores e dos mercados internacionais. É uma tarefa em que aos nossos representantes diplomáticos cabe um papel importante, mas que deve ser reforçada nas visitas ao estrangeiro dos titulares de órgãos de soberania. 

É o que tenho feito em diversas ocasiões, como foi o caso da visita que efetuei aos Estados Unidos, em novembro de 2011, aproveitando os contactos que estabeleci com destacadas personalidades da vida política norte-americana, os meios académicos, agentes económicos e financeiros, membros influentes da comunidade portuguesa e lusodescendente e com a comunicação social daquele país. 

As declarações e intervenções públicas sobre política europeia feitas no País também se inscrevem na ação do Presidente da República em tempos de crise. Desde logo, como estímulo ao debate interno sobre a integração europeia, mas ainda como apoio a outros agentes políticos nacionais para que, no plano externo, se mostrem ativos e firmes na defesa de posições europeias que correspondam aos interesses nacionais e façam ouvir uma voz crítica relativamente a certas propostas ou atitudes de alguns Estados. Somos um Estado-membro da União, com todos os deveres e direitos inerentes a esse estatuto. 

Acresce que os embaixadores acreditados em Portugal transmitem aos dirigentes políticos dos respetivos países as afirmações sobre política europeia produzidas pelos titulares dos órgãos de soberania portugueses, o que, aliás, reforça a necessidade de uma concertação estratégica entre os mais altos responsáveis do Estado, com vista a uma defesa sem falhas dos superiores interesse nacionais. 

Insere-se nesta linha de atuação o discurso que proferi na sessão solene das comemorações de 2012 do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em que critiquei os egoísmos nacionais revelados por alguns Estados da União, defendi os valores da coesão e da solidariedade, e apontei a necessidade urgente de passar das palavras aos atos e de conjugar a redução dos desequilíbrios orçamentais com uma agenda europeia para o crescimento económico e o emprego. 

A grave crise económica e financeira determinou uma outra prioridade da ação externa do Presidente da República: em complemento da atividade desenvolvida pelo Governo, contribuir para o incentivo à exportação de bens e serviços, à internacionalização das empresas e à captação de investimento direto estrangeiro. 

Tem sido minha preocupação, nos encontros com Chefes de Estado e de Governo estrangeiros, obter apoio político para o reforço do nosso relacionamento económico com os países que representam. 

Nesse sentido, o interesse nacional impõe que Portugal seja apresentado como aquilo que verdadeiramente é: uma nação multissecular orgulhosa da sua História, um Estado de direito com uma democracia consolidada, dotado de estabilidade política e respeito pelo pluralismo e pela alternância eleitoral. Um Estado, em suma, que não falha o cumprimento dos compromissos internacionalmente assumidos, e um País determinado na transformação estrutural da sua economia, visando a melhoria da competitividade das empresas, membro da União Europeia e da Zona Euro, com ligações especiais a África, com destaque para Angola e Moçambique, e à América Latina, em particular ao Brasil. A lusofonia apresenta-se como um trunfo de grande valor na projeção da imagem externa de Portugal. 

A promoção das exportações e a captação de investimento externo produtivo têm sido temas prioritários nos meus encontros com os embaixadores portugueses acreditados em países estrangeiros. Respeitando, naturalmente, as competências próprias dos demais órgãos de soberania em matéria de política externa, tenho procurado mobilizar os nossos representantes diplomáticos para as novas exigências da sua nobre missão. 

Nos contactos com entidades empresariais estrangeiras, durante as visitas ao exterior ou em audiências concedidas em Lisboa, senti ser fundamental apresentar Portugal como uma economia aberta, com um ambiente de negócios favorável à iniciativa empresarial e ao investimento e que, nas últimas décadas, registou progressos científicos e tecnológicos muito significativos. Procurei, igualmente, sublinhar a qualidade das infraestruturas e da mão-de-obra portuguesas, a recetividade ao investimento estrangeiro e a possibilidade de estabelecer parcerias orientadas para mercados bem conhecidos dos empresários portugueses, em África e na América do Sul. 

As delegações de empresários portugueses, que são escolhidos pela Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) para acompanhar o Presidente da República em visitas oficiais ao estrangeiro, revelam-se extremamente importantes para o estabelecimento de ligações com agentes económicos dos países visitados. A integração na comitiva presidencial é um fator de credibilização, que permite alargar o leque de contactos dos nossos empresários e assegurar-lhes um mais fácil acesso a entidades públicas com relevo e poder decisório nas suas áreas de negócio. 

No decurso dessas visitas tenho participado em seminários económicos organizados para promover a interação entre empresários portugueses e estrangeiros. Para citar alguns exemplos mais recentes, tal aconteceu em Timor, na Indonésia e em Singapura e, em Lisboa, aquando da visita do Presidente da República da Polónia. 

Nas minhas visitas ao estrangeiro, tenho sempre feito questão de incluir encontros com as comunidades portuguesas e de lusodescendentes, com o objetivo de contribuir para manter vivos os laços que as ligam a Portugal. 

Face à situação de crise, passei a dar maior relevo, nesses encontros, à mobilização da Diáspora portuguesa para atuar como elemento da diplomacia económica, contribuindo para a melhoria da imagem do País no exterior e para a divulgação das suas potencialidades, da qualidade dos produtos portugueses e da nossa riqueza histórica, cultural e paisagística. Com igual propósito, dei todo o meu apoio à constituição do Conselho da Diáspora Portuguesa. 

No mesmo sentido, tenho-me reunido com altos quadros empresariais portugueses que desenvolvem atividades no estrangeiro e mantêm uma ligação afetiva a Portugal, de modo a sensibilizá-los para o apoio à internacionalização das nossas empresas e à captação de investimento externo de qualidade. Foi o que aconteceu em Singapura, durante o périplo pela Ásia, em maio de 2012, e em Cascais, no IV Encontro do Conselho da Globalização, em que reuni com portugueses que ocupam, no exterior, destacadas funções de gestão em empresas multinacionais. 

Quando, em 25 de abril de 2012, na Assembleia da República, centrei o meu discurso na valorização da imagem e perceção de Portugal no estrangeiro, algumas vozes revelaram não ter ainda a noção de que se tratava de um fator da maior relevância para a afirmação das nossas empresas nos mercados externos e, consequentemente, para a recuperação económica e a criação de emprego. 

A verdade é que uma imagem positiva do País no exterior contribui para que mais bens e serviços portugueses sejam exportados, para a atração de mais turistas, mais remessas de emigrantes e mais investimento estrangeiro e, até, para a obtenção de financiamentos externos em condições mais favoráveis. 

Num balanço global, creio que já existem sinais visíveis do esforço que Portugal tem vindo a desenvolver no plano externo. Atualmente, a imagem do País no exterior é mais positiva do que há dois anos, como posso atestar nos frequentes contactos que mantenho com dirigentes políticos e empresariais de outros países. São sintomáticas, por outro lado, as diversas declarações de altos responsáveis de instituições internacionais em reconhecimento do esforço que Portugal e os Portugueses estão a realizar. 

A ação presidencial no plano interno 

Assinado o acordo de assistência financeira, foi para mim muito claro que, além de sublinhar a necessidade de Portugal honrar os compromissos assumidos, de modo a obter os meios de financiamento de que urgentemente necessitava, o Presidente da República, deveria, no plano interno, exercer uma magistratura de influência no sentido de preservar os consensos políticos e sociais e centrar as suas mensagens em três áreas: os fatores de crescimento económico, a estabilidade política e a coesão nacional. 

Estes temas deveriam ocupar lugar destacado nas minhas intervenções públicas e nos contactos com o Primeiro-Ministro e membros do Governo, com as associações empresariais e sindicais, com o sistema financeiro, com empresários e gestores e com autarcas e agentes sociais. 

No domínio económico, como já referi, a restrição do financiamento externo impunha como linha de orientação estratégica fundamental o aumento da produção de bens e serviços que concorrem com a produção estrangeira, a melhoria da competitividade das empresas e a conquista de novos mercados. 

Esta era uma questão clara, uma prioridade inequívoca, e importava fazer todos os esforços para a difundir nos meios políticos, empresariais e financeiros e em toda a sociedade portuguesa.

A ela me referi inúmeras vezes em intervenções e declarações públicas e em encontros com empresários, gestores e quadros de empresas e com representantes das organizações patronais e sindicais. Posso afirmar, sem receio de exagero, que poucos insistiram tanto neste ponto como eu. 

Tratava-se de uma orientação estratégica óbvia para um país que, desde 2005, registava desequilíbrios das contas externas da ordem de 10 por cento do PIB e de uma questão que, de resto, há muito fazia parte do meu discurso. No entanto, era necessário renovar e reforçar esta mensagem, até porque, no passado, tinha-se instalado a ideia de uma certa proteção do setor dos bens não transacionáveis, o que era refletido, em particular, na distribuição do crédito bancário a seu favor. 

A mensagem da prioridade da afetação de recursos ao setor dos bens transacionáveis foi fazendo o seu caminho e está hoje muito mais interiorizada pela sociedade portuguesa do que há dois anos – como, aliás, é visível no discurso dos meios de comunicação social. Para esta perceção também contribuiu a acentuada queda da procura interna, que estimulou os empresários a reorientarem a produção para os mercados externos. 

A execução do programa de ajustamento deixava, como únicas alavancas do crescimento económico, o investimento privado e as exportações de bens e serviços. A margem de manobra do Estado para financiar estímulos económicos expansionistas encontrava-se muito limitada e os sacrifícios exigidos às famílias provocavam uma profunda contração do consumo privado. 

Havia, assim, que valorizar muito claramente a iniciativa privada, o papel das empresas e do empreendedorismo e estimular a ligação entre as universidades e as unidades empresariais, de modo a transformar conhecimento em inovação, em conteúdo tecnológico e em competitividade. 

No mesmo sentido, havia que favorecer o rejuvenescimento do tecido empresarial português, apoiando os jovens empreendedores, dotados de boa preparação técnica, espírito de iniciativa, ambição e criatividade, abertos à inovação e à concorrência no mercado global e que não esperam proteção especial ou favores do poder político. Importava também sublinhar que um país não atinge um alto nível de rendimento e bem-estar se a sociedade não reconhecer e premiar o valor daqueles que têm mérito, talento e conhecimento. 

Tenho acompanhado com o maior interesse a ação da COTEC na expansão da rede de PME inovadoras e foram vários os encontros que mantive com jovens empresários de todas as regiões do País. Recentemente, promovi o Encontro “Os Jovens e o Futuro da Economia”, em que 60 jovens procederam a uma estimulante e frutuosa reflexão sobre a 

cultura do empreendedorismo, o empreendedorismo empresarial e o empreendedorismo social. Está a afirmar-se em Portugal, de facto, uma nova geração que nos dá razões de confiança no futuro da nossa economia. 

Por outro lado, havia que insistir na defesa da melhoria das condições de financiamento bancário das empresas, principalmente das de pequena e média dimensão e das que integram o setor exportador. A execução do programa de ajustamento cedo revelou que as dificuldades de acesso ao crédito bancário por parte das empresas e o seu elevado custo representavam um obstáculo importante ao crescimento da economia portuguesa, sendo que a sua resolução tinha não só uma dimensão nacional, mas também uma dimensão europeia, face, em particular, às exigências impostas aos bancos no quadro da política da concorrência. Este tem sido um tema privilegiado nos meus contactos com entidades do nosso sistema financeiro, bem como com o Governo e responsáveis de instituições europeias. 

Importante, também, era apoiar e estimular a ação dos autarcas como agentes da dinamização da economia dos respetivos municípios. O poder autárquico pode – e deve – dar um contributo da maior relevância para o fortalecimento e para a diversificação da capacidade produtiva local, através do apoio às micro e pequenas empresas, à captação de investimento e à difusão de uma cultura de inovação e empreendedorismo e através do aproveitamento e da valorização dos recursos regionais. Isoladamente, o contributo de cada município para a recuperação económica poderá ser pequeno, mas, no seu conjunto, é possível atingir uma dimensão muito significativa.

Nesta vertente fiz, nos últimos dois anos, cerca de uma vintena de intervenções públicas, ao mesmo tempo que procurei dar a conhecer bons exemplos locais de inovação, para que os mesmos pudessem ser replicados noutros pontos do País. Posso testemunhar que são muitos os autarcas que, a par da sua ação no desenvolvimento social e cultural, têm realizado um trabalho notável nos domínios da capacidade produtiva e da competitividade dos respetivos concelhos, atividade que é particularmente relevante face ao aumento dos riscos de desemprego, de pobreza e de exclusão social. 

Na difícil situação com que Portugal se confronta, é da maior importância abrir novos caminhos para o desenvolvimento, novas bases produtivas que possam contribuir para a diversificação da economia portuguesa e gerar oportunidades de negócios com o exterior. A economia do mar e as indústrias criativas são duas áreas a que tenho atribuído, nesta perspetiva, especial prioridade. 

É essencial sensibilizar agentes políticos, associações empresariais, investidores, investigadores, bem como a opinião pública portuguesa para as potencialidades dos diferentes subsetores da economia do mar e para o muito que, nesse âmbito, permanece por explorar. Como disse já em 2010, no meu discurso de 25 de abril, “o mar é um ativo económico maior do nosso futuro”. 

Nesse sentido, promovi e participei em múltiplas iniciativas sobre o nosso mar, um dos mais valiosos recursos de que dispomos, e aproveitei a minha deslocação à Finlândia, em fevereiro de 2012, por ocasião da reunião do Grupo de Arraiolos (grupo de reflexão sobre questões europeias constituído pelos Chefes de Estado da Alemanha, Áustria, Eslovénia, Finlândia, Hungria, Itália, Letónia, Polónia e Portugal), para pôr agentes económicos portugueses em contacto com o “cluster” marítimo finlandês, que foi desenvolvido, com grande sucesso, nos últimos 20 anos. 

Tenho, como poucos, chamado a atenção para as potencialidades da economia do mar e para as vantagens que podem resultar da sua exploração. Uma das marcas dos meus mandatos como Presidente da República é, seguramente, despertar os Portugueses para a importância do mar como um dos maiores ativos do seu País. 

A relevância do tema tem vindo a ser assimilada e a atenção prestada à economia do mar pelos municípios das regiões costeiras e associações empresariais, pelos centros de investigação e agentes económicos e pela comunicação social aumentou significativamente nos últimos anos, embora esteja ainda muito aquém do que seria de esperar num país com a maior Zona Económica Exclusiva da União Europeia, uma linha de costa de cerca de 1850 quilómetros, uma localização geográfica ímpar, entre o Atlântico Norte, o Atlântico Sul e o Mediterrâneo e, para mais, dotado de um clima propício a uma estreita ligação ao mar. 

As indústrias criativas, por seu turno, incluem não apenas as atividades diretamente ligadas às artes, mas também a criação, produção e distribuição de bens e serviços, cujo valor acrescentado é determinado pela criatividade, a inovação, o capital intelectual, a novidade e a originalidade. Trata-se de outro setor em que Portugal deve apostar, no quadro de uma estratégia de diversificação económica, sendo uma área em que predominam jovens empresários qualificados, empenhados em transformar boas ideias em negócios rentáveis e que, como tal, devem ser estimulados e apoiados. 

Foi com esse propósito que levei a cabo, na região do Grande Porto, a VI Jornada do Roteiro para a Juventude, dedicada, precisamente, às indústrias criativas, setor cuja visibilidade tenho procurado reforçar e promover. 

A atenção que tenho conferido à economia do mar e às indústrias criativas situa-se no plano da promoção de novos setores de atividade que podem concorrer para o nosso crescimento económico. Mas, em simultâneo, é essencial, no quadro de grande exigência em que Portugal está colocado, um consenso social firme e duradouro. Só desse modo poderão ser atenuados os efeitos negativos do programa de ajustamento sobre a produção e o emprego e os sacrifícios exigidos aos Portugueses. 

Daí a necessidade de prestar igualmente uma atenção especial à defesa do diálogo e da concertação entre o Governo e os parceiros sociais, método a que, desde o meu tempo de Primeiro-Ministro, atribuo grandes virtualidades. 

A concertação social, na medida em que permite uma melhor conciliação entre o interesse geral e os interesses específicos dos trabalhadores e dos empregadores, contribui para o reforço do clima de confiança e das condições de competitividade e, bem assim, para atenuar a conflitualidade e as tensões. Por outro lado, o sucesso da concertação é da maior importância para a credibilidade do País junto das instituições internacionais, dos nossos parceiros europeus e dos mercados financeiros. 

Depois do verão de 2011, foram mais de duas dezenas as reuniões que mantive com parceiros sociais e múltiplos os contactos com o Presidente do Conselho Económico e Social. Neste contexto, dei todo o meu apoio para que o “Compromisso para o Crescimento, Competitividade e Emprego”, celebrado em janeiro de 2012, chegasse a bom termo e para que fossem ultrapassados os obstáculos que podiam pôr em perigo a sua execução. 

A coesão nacional, que tão relevante é para que o País enfrente os atuais desafios em espírito de união, não se esgota na concertação social. Por isso mesmo, várias vezes sublinhei a necessidade de os sacrifícios serem repartidos de forma equitativa e justa, de preservar a solidariedade entre gerações e de combater as assimetrias de desenvolvimento e o despovoamento que ameaçam algumas zonas do interior. Com o mesmo propósito, manifestei um constante apoio às instituições de solidariedade e aos grupos de voluntariado, que têm dado um contributo fundamental para minorar os efeitos mais negativos destes tempos de crise. 

É sabido que as injustiças fiscais, em particular, quando ultrapassam determinado nível, tendem a aumentar a fuga ao pagamento de impostos e a gerar fortes movimentos de contestação social. Cabe recordar, a este propósito, que, logo no discurso de tomada de posse do atual Executivo, afirmei: “a justiça na repartição dos sacrifícios tem de ser uma marca da governação que agora se inicia”. 

No plano político, era por demais evidente que a execução do acordo celebrado com as instituições internacionais exigia solidez e consistência da coligação governativa e muito beneficiava de um consenso político alargado envolvendo as forças partidárias comprometidas com o programa de assistência financeira, as quais, como disse, representavam 90 por cento dos Deputados da Assembleia da República. 

Um consenso político alargado permitiria que o conjunto de medidas previstas no memorando de entendimento acordado com a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional fosse levado à prática tendo em conta diferentes sensibilidades da sociedade portuguesa, sendo também uma importantíssima mais-valia na defesa dos interesses nacionais no plano externo. 

Pelas informações de que dispunha, era certo que uma crise política grave, na fase crítica da execução do programa de assistência financeira, deixaria o País numa situação ainda mais penosa, pelo que devia atuar de modo a evitar que ela ocorresse. 

Estas são questões políticas que têm merecido, da minha parte, permanente atenção e acompanhamento. Tratando-se de uma área de grande delicadeza e melindre, que suscita dificuldades específicas, há que atuar neste domínio com redobrado bom senso e sempre com imparcialidade e discrição. 

Nos últimos dois anos, as políticas associadas à execução do programa de assistência financeira, a situação económica e social do País e a crise da Zona Euro, bem como as políticas europeias, foram temas dominantes nos contactos regulares entre o Presidente da República e o Governo e, em especial, nas audiências semanais que mantive com o Primeiro-Ministro. 

Por outro lado, face aos riscos de Portugal, perante o agravamento da frente externa, resvalar num ciclo de recessão prolongada, nas minhas intervenções públicas foram crescentes as referências à prioridade que deve ser atribuída aos fatores de crescimento económico e de criação de emprego. Fi-lo recentemente, na mensagem de Ano Novo, em que sublinhei a necessidade de, urgentemente, pôr cobro a uma espiral recessiva, em que a redução drástica da procura leva ao encerramento de empresas e ao agravamento do desemprego. 

Os tempos difíceis que o País atravessa não nos devem impedir, em todo o caso, de pensar o futuro para além das exigências do programa de ajustamento. Devemos olhar para lá do momento presente, construindo uma visão de longo prazo. 

Nesse sentido, tenho sublinhado, de forma persistente, a importância decisiva para o futuro do País do investimento na educação das nossas crianças e jovens, do sucesso escolar e da busca da excelência. Quanto maior a qualificação dos nossos jovens, maior a probabilidade de conseguirem emprego bem remunerado e contribuírem para o desenvolvimento nacional. O investimento em capital humano é, a longo prazo, aquele que tem maior rentabilidade. Foi esse o tema do meu discurso por ocasião da celebração do 5 de outubro e, por isso, o projeto de combate ao abandono e ao insucesso escolar da associação de Empresários pela Inclusão Social tem merecido todo o meu apoio. 

Na mesma linha, tenho alertado os agentes políticos e os Portugueses em geral para as consequências demográficas, sociais e económicas da baixíssima taxa de natalidade que se regista no nosso País. Para refletir sobre este grave problema promovi a conferência internacional “Nascer em Portugal”, a primeira dos “Roteiros do Futuro” que lancei em 2012. 

“Se não nascem crianças, é o nosso futuro coletivo que está em causa”, afirmei na minha mensagem de 1 de janeiro de 2008. Em nome do nosso futuro coletivo, continuo empenhado na defesa de uma estratégia que combata a quebra da natalidade e os seus efeitos dramáticos a longo prazo. 

Apontar caminhos de futuro, olhando para além do ruído do quotidiano, é uma das tarefas essenciais do Presidente da República.

A avaliação dos efeitos da ação política 

Como avaliar os efeitos da magistratura de influência do Presidente da República? 

O efeito de uma determinada medida económica é geralmente definido como a diferença, no mesmo momento ou período de tempo, entre a situação da economia no caso em que a medida é tomada e aquela que teria existido na ausência daquela medida. 

A determinação dos efeitos de uma medida económica requer, portanto, uma análise diferencial, o que envolve especiais dificuldades, uma vez que implica a comparação entre uma situação da economia que é real e observável – no caso em que a medida é tomada – e outra que é virtual e não é diretamente observável – aquela que se verificaria se a medida não tivesse sido tomada. 

Extrapolando para a área política, dir-se-á que o efeito de uma determinada ação consiste na diferença entre duas situações do País, no mesmo período de tempo, com e sem essa ação. 

As dificuldades na determinação dos efeitos de uma ação política são semelhantes às da determinação dos efeitos de uma medida económica. Resultam do facto de não ser possível conhecer diretamente o que teria acontecido se, por hipótese, a dita ação política não tivesse tido lugar. 

No caso da magistratura do Presidente da República, há situações em que é possível saber com exatidão qual seria a alternativa que vigoraria na ausência da intervenção presidencial. É o que ocorre, por exemplo, na alteração de um decreto da Assembleia da República, na sequência de um veto do Presidente da República, ou de um diploma do Governo, na sequência do diálogo entre os dois órgãos de soberania. 

Isto é, há casos em que é possível saber ao certo que o rumo das coisas foi diferente em resultado da intervenção do Presidente da República, embora continue a não se saber exatamente tudo sobre a diferença. 

No entanto, na generalidade dos casos, nem sequer é possível determinar com exatidão qual seria a alternativa que existiria na ausência da intervenção do Presidente da República. 

Se o Presidente da República não se tivesse empenhado, por exemplo, em mobilizar os diferentes tipos de agentes para as potencialidades da economia do mar, o que teria acontecido? A mesma questão poderia ser colocada relativamente à promoção do consenso social e político ou do empreendedorismo jovem e alargada a muitas outras ações do Presidente. 

A maior parte dos efeitos da magistratura presidencial – tal como acontece, aliás, com muitas ações de outros agentes políticos – não é, realmente, suscetível de avaliação direta e imediata. 

Esta situação surge acentuada se o Presidente da República, até para aumentar a sua capacidade de influência efetiva sobre o processo político de decisão, guardar reserva relativamente às suas intervenções junto do Governo. Recordo que, relativamente aos 1741 diplomas recebidos do Governo para efeitos de promulgação, durante o meu primeiro mandato, 381 foram objeto de alterações na sequência de contactos com o Executivo, apenas um foi formalmente vetado e nenhum foi submetido à fiscalização do Tribunal Constitucional. O resultado teria sido diferente, certamente com prejuízo para o País, se não tivesse adotado a prática, que continuo a seguir, de manter reservadas as dúvidas e objeções suscitadas por diplomas recebidos do Governo para efeitos de promulgação pelo Presidente da República. 

Num tempo dominado pelo culto do efémero e do protagonismo mediático seria porventura tentador utilizar a chefia do Estado como palco de atuação de grande efeito, buscando o engrandecimento pessoal através de intervenções mais ou menos populistas, que conquistassem simpatias do momento mas das quais nada resultaria, a não ser um grave prejuízo para o superior interesse nacional. 

Em conjunturas de crise, como a que vivemos, seria fácil tirar partido de uma magistratura que não possui responsabilidades executivas diretas para, através de declarações inflamadas na praça pública, satisfazer os instintos de certa comunicação social, de alguns analistas políticos e de muitos daqueles que pretendem contestar as instituições. Seria fácil, por exemplo, alimentar sentimentos adversos à classe política ou até à ação do Governo. 

Esse não é, no entanto, o meu entendimento sobre o que deve ser a ação responsável de um Presidente da República, muito menos em tempos de grave crise. Os Portugueses sabem como sou, conhecem a minha aversão a excessos de protagonismo pessoal e o meu apego ao superior interesse do País. A minha missão consiste em contribuir, de forma ativa mas ponderada, para que Portugal vença os desafios do presente sem perder de vista os rumos do futuro. Foi esse o mandato para que fui eleito – e dele não me afastarei nem um milímetro.

Aníbal Cavaco Silva

Março 2013

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Texto da alocução (no original pronunciada em latim, seguida da tradução em português) de resignação do Papa Bento XVI

Fratres carissimi

Non solum propter tres canonizationes ad hoc Consistorium vos convocavi, sed etiam ut vobis decisionem magni momenti pro Ecclesiae vita communicem. Conscientia mea iterum atque iterum coram Deo explorata ad cognitionem certam perveni vires meas ingravescente aetate non iam aptas esse ad munus Petrinum aeque administrandum.

Bene conscius sum hoc munus secundum suam essentiam spiritualem non solum agendo et loquendo exsequi debere, sed non minus patiendo et orando. Attamen in mundo nostri temporis rapidis mutationibus subiecto et quaestionibus magni ponderis pro vita fidei perturbato ad navem Sancti Petri gubernandam et ad annuntiandum Evangelium etiam vigor quidam corporis et animae necessarius est, qui ultimis mensibus in me modo tali minuitur, ut incapacitatem meam ad ministerium mihi commissum bene administrandum agnoscere debeam. Quapropter bene conscius ponderis huius actus plena libertate declaro me ministerio Episcopi Romae, Successoris Sancti Petri, mihi per manus Cardinalium die 19 aprilis MMV commissum renuntiare ita ut a die 28 februarii MMXIII, hora 20, sedes Romae, sedes Sancti Petri vacet et Conclave ad eligendum novum Summum Pontificem ab his quibus competit convocandum esse.

Fratres carissimi, ex toto corde gratias ago vobis pro omni amore et labore, quo mecum pondus ministerii mei portastis et veniam peto pro omnibus defectibus meis. Nunc autem Sanctam Dei Ecclesiam curae Summi eius Pastoris, Domini nostri Iesu Christi confidimus sanctamque eius Matrem Mariam imploramus, ut patribus Cardinalibus in eligendo novo Summo Pontifice materna sua bonitate assistat. Quod ad me attinet etiam in futuro vita orationi dedicata Sanctae Ecclesiae Dei toto ex corde servire velim.

Ex Aedibus Vaticanis, die 10 mensis februarii MMXIII

BENEDICTUS PP. XVI



Caríssimos Irmãos,

convoquei-vos para este Consistório não só por causa das três canonizações, mas também para vos comunicar uma decisão de grande importância para a vida da Igreja. Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino. Estou bem consciente de que este ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando. Todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado. Por isso, bem consciente da gravidade deste acto, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro, que me foi confiado pela mão dos Cardeais em 19 de Abril de 2005, pelo que, a partir de 28 de Fevereiro de 2013, às 20,00 horas, a sede de Roma, a sede de São Pedro, ficará vacante e deverá ser convocado, por aqueles a quem tal compete, o Conclave para a eleição do novo Sumo Pontífice.

Caríssimos Irmãos, verdadeiramente de coração vos agradeço por todo o amor e a fadiga com que carregastes comigo o peso do meu ministério, e peço perdão por todos os meus defeitos. Agora confiemos a Santa Igreja à solicitude do seu Pastor Supremo, Nosso Senhor Jesus Cristo, e peçamos a Maria, sua Mãe Santíssima, que assista, com a sua bondade materna, os Padres Cardeais na eleição do novo Sumo Pontífice. Pelo que me diz respeito, nomeadamente no futuro, quero servir de todo o coração, com uma vida consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus.

Vaticano, 10 de Fevereiro de 2013.

BENEDICTUS PP XVI

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

PORTUGAL finis terrae

Artigo do jornalista Pedro Rosa Mendes, publicado na revista cultural alemã LETTRE INTERNATIONAL e na revista portuguesa LER de Janeiro de 2013

O ditador Oliveira Salazar governou Portugal durante quase meio século, de 1928 a 1968 por sua mão ou inspiração, depois na modalidade de missa-de-corpo-presente através de Marcelo Caetano. Salazar, espécie de viúvo celibatário, amante apenas do seu próprio messianismo, moldou o país no fundamentalismo beato de uma opus dei a que ele chamou de Estado Novo. Salazar, com doses iguais de misticismo e de cinismo, tinha uma tripla fé: 1) em si próprio como Führer infalivel; 2) em Deus como leal confessor do poder; 3) e na miséria como ermida natural da virtude. Miséria económica, miséria cultural, miséria moral. Miséria-Patria. Sem força para ser grande, o Portugal de Salazar alimentou o orgulho da sua solidão e o culto da sua pequenez. «Um povo que tenha a coragem de ser pobre é um povo invencível», confessou um dia o ditador-beato ao seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira. Esta frase encerra todo o seu credo e toda a nossa desgraça, incluindo a que vivemos hoje. Cinquenta anos após a saída de Salazar e quatro décadas após a Revolução de Abril de 1974, o Portugal democrático, vassalo de uma troika de contabilistas e amestrado por uma trupe de domadores de circo, realiza finalmente a vìngança póstuma do ditador. O país, sujeito desde 2011 a uma intervenção financeira internacional, está à mercê de um grupo que acredita que Portugal tem tudo a ganhar em ficar mais pobre. Pobre «em termos relativos, em termos absolutos até», conforme explicou o prirneiro-ministro Pedro Passos Coelho. O tempo é de contra-revolução e de sonhos regressivos. 

O dogma de quem governa hoje em Lisboa é que não há alternativa ao regime de indigência colectiva assinado com a troika. O Orçamento de Estado português para 2013 é um marco histórico. Põe fim a uma época ao rasgar o contrato com uma sociedade que, após a Revolução dos Cravos, sonhou ser outra coisa do que aquilo que hoje, sem dó, a «Europa» lhe diz que é: já não o novo-rico entre os pobres mas o velho-pobre entre os ricos. O Orçamento, corolário de uma inclemência ideológica lancinante, anuncia uma era de trevas. É o réquiem pela III República. E um Orçamento que concretiza o desmantelamento acelerado do Estado social construído em e pela democracia Isto, em si, não é apenas uma tragédia portuguesa mas, em primeiro lugar, um ruidoso fracasso europeu. Com efeito, destrói-se de forma duradoura, num curto espaço de tempo e com a legitimação da «Europa», o que foi construído em mais de 30 anos com a ajuda da mesma «Europa››. Não é, porém, nenhum mistério nem nenhuma novidade. Na construção como na demolição, os maiores sonhos e as maiores loucuras em Portugal têm e tiveram as oportunidades e os limites permitidos pelos interesses dos nossos fiéis amigos estrangeiros. Foi assim que tivemos o nosso império e que, acessoriamente, mantivemos o holograma a que chamamos a independencia nacional. 

O resto, ao nível intemo, são as fraquezas seculares de Portugal e as continuidades de tempo longo, que regressam na actual legislatura oom um vigor descaradamente revanchista, após um alegre e espalhafatoso passeio pós-revolucionario de Portugal pela «Europa››. Façamos o balanço de quatro décadas de democracia e «convergência». O Estado cristalizou numa estrutura oligárquica, plataforma ao serviço dos interesses de uma classe política parasitária e das suas clientelas. O país, que em bom rigor não pode cumprir hoje varias das suas próprias obrigaçöes constitucionais de soberania, não é viável sem capital externo. Tão-pouco é viável sem essa jóia do atavismo nacional português chamada Angola. A nação portuguesa confronta os seus mitos com a realidade da sua irrelevância periférica e recicla na «lusofonia›› o discurso do excepcionalismo português cozinhado a partir do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre. A pobreza, então, volta a ser a condíção normal do cidadão português médio. Resignação, rancor e inveja social - marcas ancestrais de uma população que poucas vezes teve coragem de ser povo para mudar o seu destino - formam o código operativo de sobrevivência individual. De tudo isto, quem não gosta ou não aguenta, emígra, alias com a bênção indecorosa das autoridades, que chamam «oportunidades›› àquilo que é uma soma de tragédias e dramas individuais. Esta descrição, que podia ser a do Portugal de 1960, corresponde, no essencial, ao Portugal de 2012. Coloquemos apenas mais uns milhares de quìlómetros de autoestradas e outras infraestruturas, construídas, a propósito, «sem custos para o utilizador» (deram-lhes esse nome delirante), que agora engrossam o pecado mortal do défice criado pelo investimento público. «Se calhar, há coisas que não deveriamos ter querido», dizia recentemente um ex-ministro e gestor de topo, como o conforto e o despudor de quem gozou não há muito tempo um «prémio» milionário ao sair de funçöes. «Talvez tenhamos exagerado nas auto-estradas.» Não lhe ocorre perguntar, a ele e aos que na «Europa» partilham esse discurso, quem é que ganhou com essa gula do «querer coisas» e a quem serviu o «exagero» desse escândalo que constituem as Parcerias Público-Privadas (PPP). Coloquemos, é claro, neste balanço de regime essa conquista maior do Portugal democrático que é o progresso notável dos indices de educação. Mas ìsso é o que tem um sabor mais amargo: a geração com mais elevada prcparação académica da História portuguesa não tem oportunidades no seu país e vai rentabilizar, a favor de outras economías, o investimento consistente de Portugal em criação de massa crítica. Parocismo: hoje, os candidatos a um emprego escondem as suas habilitaçöes académicas para aumentar as suas hipóteses de conseguir um trabalho (mal pago). Um curso universitário ou mesmo pré-universitario é agora considerado «muito pesado» para as agências de emprego. Ao mesmo tempo, o país não venceu os fantasmas do seu provincianismo rural nem abandonou o quadro psicanalitico do Estado Novo. Nesta sociedade, que nunca conheceu uma cultura de exigencia nem de reconhecimento do mérito, os «doutores» são reis em terra de cegos. O exemplo mais caricatural é o ministro Miguel Relvas, produto acabado de uma sociedade de oportunistas. Representa um insulto à cidadania e à ética mas é sancionado por um sistema que não mudou: é feito de compadrio, de corrupção de alto nivel, de tráfico de influências e, sempre que é preciso, de bullying político e pressão directa. O prestígio social do parecer é em Portugal maior do que o prestígio social do ser. Isso não nasceu agora, é um traço do nosso subdesenvolvimento. Na última década, este fundo cultural teve a sua expressão institucional no programa Novas Oportunidades de incentivo à requalificação profissional. Com a ressalva de casos de bondade, abnegação e génio que sempre convém considerar, o programa permitiu a milhares de portugueses certificarem conhecimentos que, em substãncia, nunca adquiriram, falseando as regras de competição no mercado de trabalho. A «crise» actual é também o ponto de chegada de uma geração de portugueses amamentados numa modernidade «chave-na-mão» por líderes que, em troca de uma cultura do conforto e dos facilitismos, alimentada por um nivel generoso de consumo, concedeu aos nossos dirigentes o direito à infantilização do eleitorado. Na derrocada portuguesa, não haveria Passos Coelho sem José Sócrates. A verdade, para falar mais simples, é que o país de Salazar não morreu com ele. O ditador, que era profundamente arrogante sob a sua diáfana modéstia de sacristão, tinha afinal razão: «Só morre quem quer.»

Portugal está mergulhado numa crise profunda, mas o que vem a significar esta «crise»? O meu primeiro indicador macro-económico sobre a situação atual é puramente emocional: não tenho, hoje, nenhum amigo feliz em Portugal. Nenbum. Varios estão no desemprego, todos estão em angústia, muitos entraram em profundo desespero. Outros sairam - como eu. O panorama a comunicação social é tão inquietante como o de outros sectores, com uma agravante: às fragilidades económicas veio somar-se um ambiente destaque silencioso, mas persistente, a algumas liberdades fundamentais. Em Portugal há liberdade, sim, mas também há medo e o medo é o cancro de qualquer democracia. Despojados do crédito instantâneo, confrontados com a fragilidade da economia real do «aluno-modelo da Europa», os lusitanos descobrem, como diz um amigo meu da banca de investìmento, «que um euro português não valia o mesmo que um euro «alemão»; «The revolution will not be televised», cantava Gil Scott-Heron. Em Portugal, pelo contrário, é em directo que se assiste à crónica do fim da nossa classe média. O armagedão chegou sob a forma de um «enorme aumento de impostos» revelado à nação pela voz peculiar do ministro das Finanças, um Torquemada dos ficheiros Excel, perito em declaraçöes que nos deixam incertos se o que diz é fruto de uma «enorme» estupidez ou de uma «enorme» insolêncìa. A mesma gente que propöe e discute retirar 10 ou 20 euros a pensionistas e desempregados que vivem com 300 euros mensais concede, alegremente, perdöes fiscais de milhares de milhões de euros a uma lista reduzida de «sociedades» e «consultoras» sediadas offshore e cujos nomes ninguém identifica com produção objetiva de riqueza. Hoje, é recorrente ouvir um leque alargado de pessoas, das classes «baixas» às «médias-altas», evocar a de emigrar, seguindo na peugada dos 120 mil portugueses que, só em 2011, abandonaram o país. Quem tem filhos não vê grande futuro para eles, não na sua terra. Instala-se, tragicamente, a convicção de que «estudar não serve para nada» num país com um lastro pesadíssimo de iliteracia e analfabetismo funcional. Estudar para qué, se hoje, em Portugal, um serralheiro mecânico é mais bem remunerado do que um engenheiro? Há professores nas universidades portuguesas a receber cinco euros por hora de aula. Melhor sair, então. A hemonagia está em curso e já não é possível negar que existe, como até há pouco tempo. Quatrocentos euros, o nivel do «rendimento mínimo», são actualmente um ordenado de privilégio para jovens licenciados em Portugal. É pouco acima - convém não perder a noção das realidades - da tabela com que o coronel Khadafi apascentava o novo funcionalismo público da sua Líbia de rosto humano, nas vésperas da Primavera Árabe. Quero dizer: Portugal aproxima-se a passos de gigante de alguns dos indicadores de subdesenvolvimento e das «linhas de fragilìdade» que identificam o mundo pobre e a geografia dos Estados «falhados». Não apenas nos níveis de pobreza mas em vários outros sinais inequívocos de disfuncionalidade: o desordenamento do território, a falëncia de funções de serviço público, a ilegitimidade e isolamento das elites, a chocante desigualdade social entre uma minoria de muito ricos e uma maioria de pobres, a lumpenização das periferias, o aumento da economia paralela e, claro, os níveis pornográficos do desemprego jovem. Se, em vez deste copo «meio vazio», relativizarmos as coisas pela perspetiva do copo «meio cheio», é forçoso reconhecer na mesma que Portugal, em clara desconvergência com a «Europa», deriva rapidamente para um patamar de felicidade pragmática do melhor Magrebe. Digamos, uma espécie de Catalunha de Marrocos - sem ofensa para ninguém. Marrocos é, a propósito, motivo de vergonha comparativa para Portugal. Embriagado pelos fundos de «convergência» e com a boca na torneira de dinheiro da CEE/UE, Portugal desbaratou em despesas correntes e sem avaliação correta do retomo do investìmento uma parte substancial do que a «Europa» concedeu a título de fundos estruturais. Sem a chuva de fundos europeus, ao contrario, Marrocos teve que ser mais astuto e proativo, desenhando uma estrategia concreta de desenvolvimento nacional, de atracção de massa crítica da diáspora e de atracção de investimento estrangeiro, servida por elites com uma formação que as elites portuguesas não tinham - nem tiveram - nos anos 80 e 90. «Marrocos hoje é Portugal de há 20 anos, mas com gente mais bem preparada», dizia-me um gestor com grande experiència intemacional. As boas ideias produzem bons resultados. Casablanca, apenas para ilustração, é hoje uma cidade mais competitiva e central do que Lisboa como interface de negócios da «Europa» com o Sul emergente. Apesar do discurso vazio, para consumo intemo, de Portugal como «porta para África» (e, mais ridículo ainda, «ponte da Europa com o Brasil», que obviamente não precisa de ponte para lado nenhum), organizar uma simples reunião de negocios com empresarios africanos em Lisboa pode ser um pesadelo. Antes de mais, por causa de uma coisa chamada Sistema Schengen… A outro nível, compare-se as rotas africanas da TAP com as da Royal Air Maroc e percebe-se o acanhamento funcional de muitas empresas estratégicas portuguesas. Portugal, perdido o império, escolheu fechar-se ao Sul quando achou que a «Europa» era o seu único lugar conveniente. Aderiu ã desconfiança e ao pudor dos ricos com os continentes «dificeis›› e ergueu barreiras de todo o género (consulares, políticas, aduaneìras), insultando o seu passado e as suas obrigações morais a bem de uma distãncia higiénica com o mundo «pobre». Um mundo para onde Portugal, em actos e discursos, olhava com o mesmo desdém e sobranceria, e com indisfarçável chauvinismo, com que a «Europa» olha hoje para nós. 

Eis-nos, pois, chegados a uma rutura geográfica e não já apenas económica: Portugal já não é o Sul emergente e viçoso da «Europa» unida», bom aluno aplaudido no clube dos «grandes». É irreal recordar que, hã apenas dois anos (!), o então primeiro-ministro português, o socialista Sócrates - «mon ami Jôzê» -, era o convidado de honra de Nicolas Sarkozy num simpósio sobre «Novo Mundo, Novo Capitalismo» em Paris… Portugal é hoje a melancólica finisterra de um novo Mezzogiorno mediterrânico, cuja existência não aflige especialmente os centros de decisão europeus. Entregues agora a um «Sul» que não é bem o que a «Europa» entende por Côte d’Azur, os Portugueses assistem ao regresso víngativo da sua História - à mercë de novos poderes e esferas de ìnfluência que concretìzam uma versão ácida do regresso das caravelas. Uma multidão de desocupados da bolha da construção e dos sectores de mão-de-obra barata em Portugal ruma a Angola (e rumaria à Líbia se a revolução não tivesse adiado o boom de construção pago pelo dinheiro do petróleo, após o fim do embargo ao regime do coronel). Sobre Angola, antiga «jóia da coroa» portuguesa,diz a propaganda dos dois países que é uma terra de «oportunidades». É verdade, para quem não tiver escrúpulos. O que não se diz nos media de Luanda nem de Lisboa, nem da «Europa», é que hoje não ha dinheiro limpo em Angola e que todo o «investimento» é, direta ou indirectamente, uma lavagem. Citando o corajoso rapper angolano MCK, no fantástico poema que é o tema «No País do Pai Banana», eles «fizeram da miséria um negócio rentável». Angola é hoje um circo máximo de nova exploração colonial, num projecto de capitalismo selvagem gerido por um regime de origem e de matriz estalinista. A exploração, contudo, ìnverteu-se neste binómio luso-tropical. Os filhos e netos dos colonos portugueses são hoje - nos estaleiros, nas pedreìras, na construção civil - os semiescravos dos descendentes dos antigos «indígenas» e «assimilados».        

Mas Angola não é apenas oi destino da nossa mão-de-obra barata. Depois de uma excursão de 40 anos ã «Europa», o Portugal democrático está hoje exatamente onde estava o Portugal da perestroika marcelista. Portugal, como escrevi antes, não é viável sem Angola, o que constitui, como nos anos 70, uma questão de soberania - não já deles, mas nossa. De Luanda chega, nos últimos anos, o fluxo de capital e de investimento - as tais «oportunidades» - que mantém Portugal ã tona dos níveis mínimos da «Europa», evitando a honestidade do naufragio, a troco do controlo crescente por interesses angolanos de posiçöes vitais na banca, na energia, na distribuição e, hélas!, na comunicação social. O fracasso mútuo de Portugal na «Europa» e da «Europa» em Portugal não se mede apenas, nem sobretudo, pela falta de convergencia económico-social, mas também pela falta de convergência moral e ética na prática política e na cultura cívica. A «Europa» admite e acha normal, na sua cintura Sul, padröes de corrupção política, de má governação e de práticas antidemocráticas quotidianas que jamais passariam incólumes nos países do Norte - ou até do Leste, para esse efeito. Este é um tipo de condescendencia mal disfarçada de quem, nos anos 80 e 90, não soube, porque não quìs, em Bruxelas, Paris ou Bona, exercer o devido leverage sobre classes políticas emergentes que alimentaram e construíram as suas clientelas distribuìndo e desbaratando os «fundos de coesão», a bem de um modelo de desenvolvirnento que nunca se desviou do que era conveniente, nessa época, para os «grandes» do «projeto europeu». Não se chega sozinho a um buraco como aquele em que Portugal se encontra. Tivemos ajuda ativa e eficaz. A ajuda ao encravamento antecedeu a ajuda ao desenvolvimento. Portugal não chegou à «Europa» há mais tempo, quando devia e podia, porque a «Europa» e a «América», leia-se, as democracias ocidentais, não acharam finalmente que valesse a pena forçar demasiado a mão a Salazar (e a Franco) após 1945. Os grandes faróis do «projeto europeu» e da Aliança Atlántica decente para os portugueses (e espanhóis e gregos) a perpetuação de regìmes protofascistas, de opressão pela violencia e pela ignorãncia que, também neste caso, não admitiriam para a sua próprìa gente. Os «pais da construção europeia» estiveram entre aqueles que decidìram, conscientemente, perpetuar regimes que, como o Estado Novo, tiveram um preço incalculável - no tempo histórico colectivo como no tempo biológico individual. A consolidação democrática no coração da «Europa» - um tempo de paz, que é o tempo da sementeira e da colheita - foi paga, em parte, com o juro da totalitarização de várias periferias, incluindo o país onde nasci. A «Europa», rápida a julgar e a catalogar, não devia esquecer que, antes de pagar (como ouvimos hoje dizer) a «integração» de Portugal, fomentou e ganhou com a sua exclusão. A Guerra Fria teve uma segunda cortina de ferro, a oeste, nos Pirenéus: a cortina da reacção, simétrica da cortina da revolução. Incómoda equação, esta, para um português: engolimos hoje aulas de contabilidade de quem não soube, na devida altura, dar-nos liçöes de liberdade. A figura primeiro heróica e depois trágica do general Humberto Delgado é a melhor ilustração da relação pouco edìficante entre as potências ocidentais e Portugal. Jovem oficial, apoiou o golpe militar e a emergência de Salazar, em 1943, oficial superior da Força Aérea, teve um papel crucial na negociação do acordo que possibilitou a utilização dos Açores pelos Americanos e a viragem da guerra no Atlãntico (e depois na Europa continental); em 1958, concorreu contra o candidato de Salazar às eleiçöes presidenciais, mas faltou-lhe o apoio imprescindível de Washington e de Londres à ideia de um processo de democratização em Portugal. Após anos de exilio, acabou assassinado na fronteira espanhola por um agente da PIDE.  

Num dos episódios maiores da História do século XX, a hipótese de uma democracia em Espanha foi esmagada com a ajuda da Alemanha nazi, imortalizada na tela mais famosa de Picasso. Portugal, é claro, não teve guena civil e, portanto, não houve sequer ocasião de vivermos o nosso «momento-Guernica». As coisas passaram-se de forma mais perversa e profunda. Em socorro de Salazar e do Estado Novo vieram, no pós-guerra, com um Plano Marshall oficioso, os velhos amigos Ingleses e os novos amigos Americanos. Ofereceram ao regime a frieza do cálculo dos parceiros de Portugal na NATO e o discreto investimento estrangeiro (alemão, americano, francês. britânico, japonês. Foi esse o oxigénio que permitiu ao Estado Novo sobreviver artificialmente para lá do seu prazo de validade histórica. Esse investimento foi exatamente isso: aplicação de capital com a intenção de cobrar dividendos e de obter um retorno estipulado e mensurãvel. Quem não compreender isto ou é especialmente ingénuo ou especialmente crente no altruísmo a fundo perdido. A lista (e o mapa) de ìnvestidores é impressionante, mesmo sem ser exaustiva: Damag (REA) e Baboook &,WìlSon (lngilaterra) na Metalúrgica do Montijo; Prooon na Refinaria da Matola, em Moçambique; Péchiney (França) na Fábrica de Aluminio do Dondo, em Angola; Phoenix-Rheinruhr (RFA) na distribuição de energia da Metalurgia do Seixal, construída por um consorcio de empresas alemãs e belgas, United States Steel Corp. (EUA), Monison Company (EUA), Tudor Engineering (EUA) e DB. Steinman (EUA) no projeto da Ponte Salazar; Ingersoll Rand (EUA), fabricante de compressores e equipamentos afins; capital sueco na construção da celulose da Socel na Margem Sul; Krupps (RFA) e Hojgaard et Schultz (Dinamarca) nos investimentos mineiros em Angola; etc., etc., etc. O capital estrangeiro no pós-guerra continuou a melhor tradição de um império que foi a única potência impotente da Conferência de Berlìrn e que obteve e manteve as colónias africanas empurrado pela conveniëncia britânica de contrariar os apetites imperiais da Alemanha e da França. Dos Caminhos de Ferro de Benguela, obra estruturante do projeto colonial de Angola, às grandes companhias coloniais do vale do Zambeze, em Moçambique, o imperio português era uma máquina oleada a dinheiro inglês, alemão e belga. Se a esse facto acrescentarmos o investimento do pós- guerra em Portugal, compreendemos de forma mais nítida a natureza real da mítica «visão» de Salazar. E ficamos elucidados sobre o tipo de colaboracionismo que deu a mão à «modernização» entrópica encetada pelo Estado Novo entre metrópole e colónias. Foi o capital oriundo das democracias ocidentais que pagou a distopia de Salazar, um país que gastava um terço do Orçarnento com as forças armadas, numa época em que a educação era contemplada com menos de 10 por cento. Pior: foi esse «investimento» que deu margem ao ditador para, na metrópole, manter contentes os únicos fiadores do seu poder - os militares, sempre os militares - e, nas provincias ultramarinas, envolver Portugal em três frentes de guerra que tiveram um preço incalculável em sofrimento humano e atraso social. Na vaga de abertura da «Europa» do pós-guerra, teria sido legítimo pensar que a descolonização das colonias portuguesas seria o motor saudável da democratização do país.Tragicarnente, sabemos, a teimosia de Salazar determjnou que acontecesse o contrárìo. Mas importa recordar que a «Legião Condor» à portuguesa foi o que hoje se chamaria uma coalition of the willing de bombardeiros americanos, helicópteros franceses, navios alemães. Foi preciso comprar a alguém e ninguém, então como hoje, fornece armamento e equipamento militar de graça. Recentemente, nos arquivos de Moscovo, vieram-me à mão diferentes documentos sobre o papel da Alemanha na guerra colonial de Salazar. Num deles, de 1969, Amílcar Cabral, líder do PAIGC, tenta acordar a opinião pública alemã para o facto de os estaleiros Blohm & Voss, de Hamburgo, terem em mãos uma encomenda de três fragatas para a marinha de guerra portuguesa, «propicias ã utilização» na Guiné. Lembrei-me de uma passagem do escritor sueco Sven Lindqvist em que ele recorda uma dìscussão, na sua adolescência, num pequeno porto norueguês, a propósito da ocupação nazi alemã e sueca. O jovem Sven alegou que antes de 1945 era ainda criança mas um dos pescadores respondeu-lhe qualquer coisa como: «Sim, mas também aproveitaste do saque.» Não é uma questão de culpa, explica Lindqvist, mas de decência e sentido da realidade. 

Nestes momentos de turbulência europeia, a pretexto do caso da Grécia, recorda-se a questão das indemnizaçöes de guerra. A mim que, em 1968, nasci num país e numa região ignaros, filho de um homem que combateu três anos em Africa e de uma mulher que não tinha água corrente ou luz eléctrica em casa, ocorre-me perguntar: a quem é que eu exijo uma indemnização de paz? Ao Presidente americano? À rainha de Inglaterra? À chanceler alemã? Ao secretario-geral da NATO? À «Europa», na pessoa do Dr. Barroso? Ao CEO da Krupps? A ninguém, evidentemente. Mas a todos eles exijo, se exige, que deixem de tratar os países «sob intervenção» como um covil de preguiçosos que ainda não compreenderam o valor do trabalho e que merecem viver sem salários, sem protecção social e sem horizonte de futuro. O progresso do «Sul», aliás, não foi apenas desperdicio, e serviu bastante bem as exportações dos países industrializados do «Norte». Basta circular em Portugal e ver os carros alemães, os camiöes suecos e os tratores americanos… Tomemos, aliás, uma metáfora mecânica: a quem o compra, um Bayernmobil dá status e prazer de condução; a quem o fez, seguramente, já deu emprego. O ganho maior é de quem usa ou de quem fabrica? Ou, para ser mais claro: o «consumo» de alguém já foi inscrito na «competitividade» de outrem.  

Desespero quotidiano, perante o futuro, nas relações, desprezo pela classe política, politização fora do espaço partidário e parlamentar. É este o retrato do país no outono de 2012. Otelo Saraiva de Carvalho avisou que Portugal está à beira de «uma revolução não-pacífica». A sorte do Governo, e dos Portugueses, é a única conquista inamovível da democracia portuguesa: já passou o tempo dos golpes de Estado. A favor da troika e dos inclementes que nos governam há também o peso do passado: a pobreza tão cara a Salazar. Foi apenas ha uma geração que os Portugueses deixaram um quadro social em que a dieta de um individuo normal era de um copo de leite por dia, uma pequena peça de carne por semana, três ovos por mês e uma galinha por ano. Pobres já nós somos, como recordou Passos Coelho. Estranha coincidência: a parte inferior do rosto de Passos é incrivelmente idêntica à de Salazar. A vingança de um sorri para nós na sobranceria do outro. Resta, pois, a rua, morada comum da raiva.

Genebra, Outubro-Dezembro de 2012