segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

PORTUGAL finis terrae

Artigo do jornalista Pedro Rosa Mendes, publicado na revista cultural alemã LETTRE INTERNATIONAL e na revista portuguesa LER de Janeiro de 2013

O ditador Oliveira Salazar governou Portugal durante quase meio século, de 1928 a 1968 por sua mão ou inspiração, depois na modalidade de missa-de-corpo-presente através de Marcelo Caetano. Salazar, espécie de viúvo celibatário, amante apenas do seu próprio messianismo, moldou o país no fundamentalismo beato de uma opus dei a que ele chamou de Estado Novo. Salazar, com doses iguais de misticismo e de cinismo, tinha uma tripla fé: 1) em si próprio como Führer infalivel; 2) em Deus como leal confessor do poder; 3) e na miséria como ermida natural da virtude. Miséria económica, miséria cultural, miséria moral. Miséria-Patria. Sem força para ser grande, o Portugal de Salazar alimentou o orgulho da sua solidão e o culto da sua pequenez. «Um povo que tenha a coragem de ser pobre é um povo invencível», confessou um dia o ditador-beato ao seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira. Esta frase encerra todo o seu credo e toda a nossa desgraça, incluindo a que vivemos hoje. Cinquenta anos após a saída de Salazar e quatro décadas após a Revolução de Abril de 1974, o Portugal democrático, vassalo de uma troika de contabilistas e amestrado por uma trupe de domadores de circo, realiza finalmente a vìngança póstuma do ditador. O país, sujeito desde 2011 a uma intervenção financeira internacional, está à mercê de um grupo que acredita que Portugal tem tudo a ganhar em ficar mais pobre. Pobre «em termos relativos, em termos absolutos até», conforme explicou o prirneiro-ministro Pedro Passos Coelho. O tempo é de contra-revolução e de sonhos regressivos. 

O dogma de quem governa hoje em Lisboa é que não há alternativa ao regime de indigência colectiva assinado com a troika. O Orçamento de Estado português para 2013 é um marco histórico. Põe fim a uma época ao rasgar o contrato com uma sociedade que, após a Revolução dos Cravos, sonhou ser outra coisa do que aquilo que hoje, sem dó, a «Europa» lhe diz que é: já não o novo-rico entre os pobres mas o velho-pobre entre os ricos. O Orçamento, corolário de uma inclemência ideológica lancinante, anuncia uma era de trevas. É o réquiem pela III República. E um Orçamento que concretiza o desmantelamento acelerado do Estado social construído em e pela democracia Isto, em si, não é apenas uma tragédia portuguesa mas, em primeiro lugar, um ruidoso fracasso europeu. Com efeito, destrói-se de forma duradoura, num curto espaço de tempo e com a legitimação da «Europa», o que foi construído em mais de 30 anos com a ajuda da mesma «Europa››. Não é, porém, nenhum mistério nem nenhuma novidade. Na construção como na demolição, os maiores sonhos e as maiores loucuras em Portugal têm e tiveram as oportunidades e os limites permitidos pelos interesses dos nossos fiéis amigos estrangeiros. Foi assim que tivemos o nosso império e que, acessoriamente, mantivemos o holograma a que chamamos a independencia nacional. 

O resto, ao nível intemo, são as fraquezas seculares de Portugal e as continuidades de tempo longo, que regressam na actual legislatura oom um vigor descaradamente revanchista, após um alegre e espalhafatoso passeio pós-revolucionario de Portugal pela «Europa››. Façamos o balanço de quatro décadas de democracia e «convergência». O Estado cristalizou numa estrutura oligárquica, plataforma ao serviço dos interesses de uma classe política parasitária e das suas clientelas. O país, que em bom rigor não pode cumprir hoje varias das suas próprias obrigaçöes constitucionais de soberania, não é viável sem capital externo. Tão-pouco é viável sem essa jóia do atavismo nacional português chamada Angola. A nação portuguesa confronta os seus mitos com a realidade da sua irrelevância periférica e recicla na «lusofonia›› o discurso do excepcionalismo português cozinhado a partir do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre. A pobreza, então, volta a ser a condíção normal do cidadão português médio. Resignação, rancor e inveja social - marcas ancestrais de uma população que poucas vezes teve coragem de ser povo para mudar o seu destino - formam o código operativo de sobrevivência individual. De tudo isto, quem não gosta ou não aguenta, emígra, alias com a bênção indecorosa das autoridades, que chamam «oportunidades›› àquilo que é uma soma de tragédias e dramas individuais. Esta descrição, que podia ser a do Portugal de 1960, corresponde, no essencial, ao Portugal de 2012. Coloquemos apenas mais uns milhares de quìlómetros de autoestradas e outras infraestruturas, construídas, a propósito, «sem custos para o utilizador» (deram-lhes esse nome delirante), que agora engrossam o pecado mortal do défice criado pelo investimento público. «Se calhar, há coisas que não deveriamos ter querido», dizia recentemente um ex-ministro e gestor de topo, como o conforto e o despudor de quem gozou não há muito tempo um «prémio» milionário ao sair de funçöes. «Talvez tenhamos exagerado nas auto-estradas.» Não lhe ocorre perguntar, a ele e aos que na «Europa» partilham esse discurso, quem é que ganhou com essa gula do «querer coisas» e a quem serviu o «exagero» desse escândalo que constituem as Parcerias Público-Privadas (PPP). Coloquemos, é claro, neste balanço de regime essa conquista maior do Portugal democrático que é o progresso notável dos indices de educação. Mas ìsso é o que tem um sabor mais amargo: a geração com mais elevada prcparação académica da História portuguesa não tem oportunidades no seu país e vai rentabilizar, a favor de outras economías, o investimento consistente de Portugal em criação de massa crítica. Parocismo: hoje, os candidatos a um emprego escondem as suas habilitaçöes académicas para aumentar as suas hipóteses de conseguir um trabalho (mal pago). Um curso universitário ou mesmo pré-universitario é agora considerado «muito pesado» para as agências de emprego. Ao mesmo tempo, o país não venceu os fantasmas do seu provincianismo rural nem abandonou o quadro psicanalitico do Estado Novo. Nesta sociedade, que nunca conheceu uma cultura de exigencia nem de reconhecimento do mérito, os «doutores» são reis em terra de cegos. O exemplo mais caricatural é o ministro Miguel Relvas, produto acabado de uma sociedade de oportunistas. Representa um insulto à cidadania e à ética mas é sancionado por um sistema que não mudou: é feito de compadrio, de corrupção de alto nivel, de tráfico de influências e, sempre que é preciso, de bullying político e pressão directa. O prestígio social do parecer é em Portugal maior do que o prestígio social do ser. Isso não nasceu agora, é um traço do nosso subdesenvolvimento. Na última década, este fundo cultural teve a sua expressão institucional no programa Novas Oportunidades de incentivo à requalificação profissional. Com a ressalva de casos de bondade, abnegação e génio que sempre convém considerar, o programa permitiu a milhares de portugueses certificarem conhecimentos que, em substãncia, nunca adquiriram, falseando as regras de competição no mercado de trabalho. A «crise» actual é também o ponto de chegada de uma geração de portugueses amamentados numa modernidade «chave-na-mão» por líderes que, em troca de uma cultura do conforto e dos facilitismos, alimentada por um nivel generoso de consumo, concedeu aos nossos dirigentes o direito à infantilização do eleitorado. Na derrocada portuguesa, não haveria Passos Coelho sem José Sócrates. A verdade, para falar mais simples, é que o país de Salazar não morreu com ele. O ditador, que era profundamente arrogante sob a sua diáfana modéstia de sacristão, tinha afinal razão: «Só morre quem quer.»

Portugal está mergulhado numa crise profunda, mas o que vem a significar esta «crise»? O meu primeiro indicador macro-económico sobre a situação atual é puramente emocional: não tenho, hoje, nenhum amigo feliz em Portugal. Nenbum. Varios estão no desemprego, todos estão em angústia, muitos entraram em profundo desespero. Outros sairam - como eu. O panorama a comunicação social é tão inquietante como o de outros sectores, com uma agravante: às fragilidades económicas veio somar-se um ambiente destaque silencioso, mas persistente, a algumas liberdades fundamentais. Em Portugal há liberdade, sim, mas também há medo e o medo é o cancro de qualquer democracia. Despojados do crédito instantâneo, confrontados com a fragilidade da economia real do «aluno-modelo da Europa», os lusitanos descobrem, como diz um amigo meu da banca de investìmento, «que um euro português não valia o mesmo que um euro «alemão»; «The revolution will not be televised», cantava Gil Scott-Heron. Em Portugal, pelo contrário, é em directo que se assiste à crónica do fim da nossa classe média. O armagedão chegou sob a forma de um «enorme aumento de impostos» revelado à nação pela voz peculiar do ministro das Finanças, um Torquemada dos ficheiros Excel, perito em declaraçöes que nos deixam incertos se o que diz é fruto de uma «enorme» estupidez ou de uma «enorme» insolêncìa. A mesma gente que propöe e discute retirar 10 ou 20 euros a pensionistas e desempregados que vivem com 300 euros mensais concede, alegremente, perdöes fiscais de milhares de milhões de euros a uma lista reduzida de «sociedades» e «consultoras» sediadas offshore e cujos nomes ninguém identifica com produção objetiva de riqueza. Hoje, é recorrente ouvir um leque alargado de pessoas, das classes «baixas» às «médias-altas», evocar a de emigrar, seguindo na peugada dos 120 mil portugueses que, só em 2011, abandonaram o país. Quem tem filhos não vê grande futuro para eles, não na sua terra. Instala-se, tragicamente, a convicção de que «estudar não serve para nada» num país com um lastro pesadíssimo de iliteracia e analfabetismo funcional. Estudar para qué, se hoje, em Portugal, um serralheiro mecânico é mais bem remunerado do que um engenheiro? Há professores nas universidades portuguesas a receber cinco euros por hora de aula. Melhor sair, então. A hemonagia está em curso e já não é possível negar que existe, como até há pouco tempo. Quatrocentos euros, o nivel do «rendimento mínimo», são actualmente um ordenado de privilégio para jovens licenciados em Portugal. É pouco acima - convém não perder a noção das realidades - da tabela com que o coronel Khadafi apascentava o novo funcionalismo público da sua Líbia de rosto humano, nas vésperas da Primavera Árabe. Quero dizer: Portugal aproxima-se a passos de gigante de alguns dos indicadores de subdesenvolvimento e das «linhas de fragilìdade» que identificam o mundo pobre e a geografia dos Estados «falhados». Não apenas nos níveis de pobreza mas em vários outros sinais inequívocos de disfuncionalidade: o desordenamento do território, a falëncia de funções de serviço público, a ilegitimidade e isolamento das elites, a chocante desigualdade social entre uma minoria de muito ricos e uma maioria de pobres, a lumpenização das periferias, o aumento da economia paralela e, claro, os níveis pornográficos do desemprego jovem. Se, em vez deste copo «meio vazio», relativizarmos as coisas pela perspetiva do copo «meio cheio», é forçoso reconhecer na mesma que Portugal, em clara desconvergência com a «Europa», deriva rapidamente para um patamar de felicidade pragmática do melhor Magrebe. Digamos, uma espécie de Catalunha de Marrocos - sem ofensa para ninguém. Marrocos é, a propósito, motivo de vergonha comparativa para Portugal. Embriagado pelos fundos de «convergência» e com a boca na torneira de dinheiro da CEE/UE, Portugal desbaratou em despesas correntes e sem avaliação correta do retomo do investìmento uma parte substancial do que a «Europa» concedeu a título de fundos estruturais. Sem a chuva de fundos europeus, ao contrario, Marrocos teve que ser mais astuto e proativo, desenhando uma estrategia concreta de desenvolvimento nacional, de atracção de massa crítica da diáspora e de atracção de investimento estrangeiro, servida por elites com uma formação que as elites portuguesas não tinham - nem tiveram - nos anos 80 e 90. «Marrocos hoje é Portugal de há 20 anos, mas com gente mais bem preparada», dizia-me um gestor com grande experiència intemacional. As boas ideias produzem bons resultados. Casablanca, apenas para ilustração, é hoje uma cidade mais competitiva e central do que Lisboa como interface de negócios da «Europa» com o Sul emergente. Apesar do discurso vazio, para consumo intemo, de Portugal como «porta para África» (e, mais ridículo ainda, «ponte da Europa com o Brasil», que obviamente não precisa de ponte para lado nenhum), organizar uma simples reunião de negocios com empresarios africanos em Lisboa pode ser um pesadelo. Antes de mais, por causa de uma coisa chamada Sistema Schengen… A outro nível, compare-se as rotas africanas da TAP com as da Royal Air Maroc e percebe-se o acanhamento funcional de muitas empresas estratégicas portuguesas. Portugal, perdido o império, escolheu fechar-se ao Sul quando achou que a «Europa» era o seu único lugar conveniente. Aderiu ã desconfiança e ao pudor dos ricos com os continentes «dificeis›› e ergueu barreiras de todo o género (consulares, políticas, aduaneìras), insultando o seu passado e as suas obrigações morais a bem de uma distãncia higiénica com o mundo «pobre». Um mundo para onde Portugal, em actos e discursos, olhava com o mesmo desdém e sobranceria, e com indisfarçável chauvinismo, com que a «Europa» olha hoje para nós. 

Eis-nos, pois, chegados a uma rutura geográfica e não já apenas económica: Portugal já não é o Sul emergente e viçoso da «Europa» unida», bom aluno aplaudido no clube dos «grandes». É irreal recordar que, hã apenas dois anos (!), o então primeiro-ministro português, o socialista Sócrates - «mon ami Jôzê» -, era o convidado de honra de Nicolas Sarkozy num simpósio sobre «Novo Mundo, Novo Capitalismo» em Paris… Portugal é hoje a melancólica finisterra de um novo Mezzogiorno mediterrânico, cuja existência não aflige especialmente os centros de decisão europeus. Entregues agora a um «Sul» que não é bem o que a «Europa» entende por Côte d’Azur, os Portugueses assistem ao regresso víngativo da sua História - à mercë de novos poderes e esferas de ìnfluência que concretìzam uma versão ácida do regresso das caravelas. Uma multidão de desocupados da bolha da construção e dos sectores de mão-de-obra barata em Portugal ruma a Angola (e rumaria à Líbia se a revolução não tivesse adiado o boom de construção pago pelo dinheiro do petróleo, após o fim do embargo ao regime do coronel). Sobre Angola, antiga «jóia da coroa» portuguesa,diz a propaganda dos dois países que é uma terra de «oportunidades». É verdade, para quem não tiver escrúpulos. O que não se diz nos media de Luanda nem de Lisboa, nem da «Europa», é que hoje não ha dinheiro limpo em Angola e que todo o «investimento» é, direta ou indirectamente, uma lavagem. Citando o corajoso rapper angolano MCK, no fantástico poema que é o tema «No País do Pai Banana», eles «fizeram da miséria um negócio rentável». Angola é hoje um circo máximo de nova exploração colonial, num projecto de capitalismo selvagem gerido por um regime de origem e de matriz estalinista. A exploração, contudo, ìnverteu-se neste binómio luso-tropical. Os filhos e netos dos colonos portugueses são hoje - nos estaleiros, nas pedreìras, na construção civil - os semiescravos dos descendentes dos antigos «indígenas» e «assimilados».        

Mas Angola não é apenas oi destino da nossa mão-de-obra barata. Depois de uma excursão de 40 anos ã «Europa», o Portugal democrático está hoje exatamente onde estava o Portugal da perestroika marcelista. Portugal, como escrevi antes, não é viável sem Angola, o que constitui, como nos anos 70, uma questão de soberania - não já deles, mas nossa. De Luanda chega, nos últimos anos, o fluxo de capital e de investimento - as tais «oportunidades» - que mantém Portugal ã tona dos níveis mínimos da «Europa», evitando a honestidade do naufragio, a troco do controlo crescente por interesses angolanos de posiçöes vitais na banca, na energia, na distribuição e, hélas!, na comunicação social. O fracasso mútuo de Portugal na «Europa» e da «Europa» em Portugal não se mede apenas, nem sobretudo, pela falta de convergencia económico-social, mas também pela falta de convergência moral e ética na prática política e na cultura cívica. A «Europa» admite e acha normal, na sua cintura Sul, padröes de corrupção política, de má governação e de práticas antidemocráticas quotidianas que jamais passariam incólumes nos países do Norte - ou até do Leste, para esse efeito. Este é um tipo de condescendencia mal disfarçada de quem, nos anos 80 e 90, não soube, porque não quìs, em Bruxelas, Paris ou Bona, exercer o devido leverage sobre classes políticas emergentes que alimentaram e construíram as suas clientelas distribuìndo e desbaratando os «fundos de coesão», a bem de um modelo de desenvolvirnento que nunca se desviou do que era conveniente, nessa época, para os «grandes» do «projeto europeu». Não se chega sozinho a um buraco como aquele em que Portugal se encontra. Tivemos ajuda ativa e eficaz. A ajuda ao encravamento antecedeu a ajuda ao desenvolvimento. Portugal não chegou à «Europa» há mais tempo, quando devia e podia, porque a «Europa» e a «América», leia-se, as democracias ocidentais, não acharam finalmente que valesse a pena forçar demasiado a mão a Salazar (e a Franco) após 1945. Os grandes faróis do «projeto europeu» e da Aliança Atlántica decente para os portugueses (e espanhóis e gregos) a perpetuação de regìmes protofascistas, de opressão pela violencia e pela ignorãncia que, também neste caso, não admitiriam para a sua próprìa gente. Os «pais da construção europeia» estiveram entre aqueles que decidìram, conscientemente, perpetuar regimes que, como o Estado Novo, tiveram um preço incalculável - no tempo histórico colectivo como no tempo biológico individual. A consolidação democrática no coração da «Europa» - um tempo de paz, que é o tempo da sementeira e da colheita - foi paga, em parte, com o juro da totalitarização de várias periferias, incluindo o país onde nasci. A «Europa», rápida a julgar e a catalogar, não devia esquecer que, antes de pagar (como ouvimos hoje dizer) a «integração» de Portugal, fomentou e ganhou com a sua exclusão. A Guerra Fria teve uma segunda cortina de ferro, a oeste, nos Pirenéus: a cortina da reacção, simétrica da cortina da revolução. Incómoda equação, esta, para um português: engolimos hoje aulas de contabilidade de quem não soube, na devida altura, dar-nos liçöes de liberdade. A figura primeiro heróica e depois trágica do general Humberto Delgado é a melhor ilustração da relação pouco edìficante entre as potências ocidentais e Portugal. Jovem oficial, apoiou o golpe militar e a emergência de Salazar, em 1943, oficial superior da Força Aérea, teve um papel crucial na negociação do acordo que possibilitou a utilização dos Açores pelos Americanos e a viragem da guerra no Atlãntico (e depois na Europa continental); em 1958, concorreu contra o candidato de Salazar às eleiçöes presidenciais, mas faltou-lhe o apoio imprescindível de Washington e de Londres à ideia de um processo de democratização em Portugal. Após anos de exilio, acabou assassinado na fronteira espanhola por um agente da PIDE.  

Num dos episódios maiores da História do século XX, a hipótese de uma democracia em Espanha foi esmagada com a ajuda da Alemanha nazi, imortalizada na tela mais famosa de Picasso. Portugal, é claro, não teve guena civil e, portanto, não houve sequer ocasião de vivermos o nosso «momento-Guernica». As coisas passaram-se de forma mais perversa e profunda. Em socorro de Salazar e do Estado Novo vieram, no pós-guerra, com um Plano Marshall oficioso, os velhos amigos Ingleses e os novos amigos Americanos. Ofereceram ao regime a frieza do cálculo dos parceiros de Portugal na NATO e o discreto investimento estrangeiro (alemão, americano, francês. britânico, japonês. Foi esse o oxigénio que permitiu ao Estado Novo sobreviver artificialmente para lá do seu prazo de validade histórica. Esse investimento foi exatamente isso: aplicação de capital com a intenção de cobrar dividendos e de obter um retorno estipulado e mensurãvel. Quem não compreender isto ou é especialmente ingénuo ou especialmente crente no altruísmo a fundo perdido. A lista (e o mapa) de ìnvestidores é impressionante, mesmo sem ser exaustiva: Damag (REA) e Baboook &,WìlSon (lngilaterra) na Metalúrgica do Montijo; Prooon na Refinaria da Matola, em Moçambique; Péchiney (França) na Fábrica de Aluminio do Dondo, em Angola; Phoenix-Rheinruhr (RFA) na distribuição de energia da Metalurgia do Seixal, construída por um consorcio de empresas alemãs e belgas, United States Steel Corp. (EUA), Monison Company (EUA), Tudor Engineering (EUA) e DB. Steinman (EUA) no projeto da Ponte Salazar; Ingersoll Rand (EUA), fabricante de compressores e equipamentos afins; capital sueco na construção da celulose da Socel na Margem Sul; Krupps (RFA) e Hojgaard et Schultz (Dinamarca) nos investimentos mineiros em Angola; etc., etc., etc. O capital estrangeiro no pós-guerra continuou a melhor tradição de um império que foi a única potência impotente da Conferência de Berlìrn e que obteve e manteve as colónias africanas empurrado pela conveniëncia britânica de contrariar os apetites imperiais da Alemanha e da França. Dos Caminhos de Ferro de Benguela, obra estruturante do projeto colonial de Angola, às grandes companhias coloniais do vale do Zambeze, em Moçambique, o imperio português era uma máquina oleada a dinheiro inglês, alemão e belga. Se a esse facto acrescentarmos o investimento do pós- guerra em Portugal, compreendemos de forma mais nítida a natureza real da mítica «visão» de Salazar. E ficamos elucidados sobre o tipo de colaboracionismo que deu a mão à «modernização» entrópica encetada pelo Estado Novo entre metrópole e colónias. Foi o capital oriundo das democracias ocidentais que pagou a distopia de Salazar, um país que gastava um terço do Orçarnento com as forças armadas, numa época em que a educação era contemplada com menos de 10 por cento. Pior: foi esse «investimento» que deu margem ao ditador para, na metrópole, manter contentes os únicos fiadores do seu poder - os militares, sempre os militares - e, nas provincias ultramarinas, envolver Portugal em três frentes de guerra que tiveram um preço incalculável em sofrimento humano e atraso social. Na vaga de abertura da «Europa» do pós-guerra, teria sido legítimo pensar que a descolonização das colonias portuguesas seria o motor saudável da democratização do país.Tragicarnente, sabemos, a teimosia de Salazar determjnou que acontecesse o contrárìo. Mas importa recordar que a «Legião Condor» à portuguesa foi o que hoje se chamaria uma coalition of the willing de bombardeiros americanos, helicópteros franceses, navios alemães. Foi preciso comprar a alguém e ninguém, então como hoje, fornece armamento e equipamento militar de graça. Recentemente, nos arquivos de Moscovo, vieram-me à mão diferentes documentos sobre o papel da Alemanha na guerra colonial de Salazar. Num deles, de 1969, Amílcar Cabral, líder do PAIGC, tenta acordar a opinião pública alemã para o facto de os estaleiros Blohm & Voss, de Hamburgo, terem em mãos uma encomenda de três fragatas para a marinha de guerra portuguesa, «propicias ã utilização» na Guiné. Lembrei-me de uma passagem do escritor sueco Sven Lindqvist em que ele recorda uma dìscussão, na sua adolescência, num pequeno porto norueguês, a propósito da ocupação nazi alemã e sueca. O jovem Sven alegou que antes de 1945 era ainda criança mas um dos pescadores respondeu-lhe qualquer coisa como: «Sim, mas também aproveitaste do saque.» Não é uma questão de culpa, explica Lindqvist, mas de decência e sentido da realidade. 

Nestes momentos de turbulência europeia, a pretexto do caso da Grécia, recorda-se a questão das indemnizaçöes de guerra. A mim que, em 1968, nasci num país e numa região ignaros, filho de um homem que combateu três anos em Africa e de uma mulher que não tinha água corrente ou luz eléctrica em casa, ocorre-me perguntar: a quem é que eu exijo uma indemnização de paz? Ao Presidente americano? À rainha de Inglaterra? À chanceler alemã? Ao secretario-geral da NATO? À «Europa», na pessoa do Dr. Barroso? Ao CEO da Krupps? A ninguém, evidentemente. Mas a todos eles exijo, se exige, que deixem de tratar os países «sob intervenção» como um covil de preguiçosos que ainda não compreenderam o valor do trabalho e que merecem viver sem salários, sem protecção social e sem horizonte de futuro. O progresso do «Sul», aliás, não foi apenas desperdicio, e serviu bastante bem as exportações dos países industrializados do «Norte». Basta circular em Portugal e ver os carros alemães, os camiöes suecos e os tratores americanos… Tomemos, aliás, uma metáfora mecânica: a quem o compra, um Bayernmobil dá status e prazer de condução; a quem o fez, seguramente, já deu emprego. O ganho maior é de quem usa ou de quem fabrica? Ou, para ser mais claro: o «consumo» de alguém já foi inscrito na «competitividade» de outrem.  

Desespero quotidiano, perante o futuro, nas relações, desprezo pela classe política, politização fora do espaço partidário e parlamentar. É este o retrato do país no outono de 2012. Otelo Saraiva de Carvalho avisou que Portugal está à beira de «uma revolução não-pacífica». A sorte do Governo, e dos Portugueses, é a única conquista inamovível da democracia portuguesa: já passou o tempo dos golpes de Estado. A favor da troika e dos inclementes que nos governam há também o peso do passado: a pobreza tão cara a Salazar. Foi apenas ha uma geração que os Portugueses deixaram um quadro social em que a dieta de um individuo normal era de um copo de leite por dia, uma pequena peça de carne por semana, três ovos por mês e uma galinha por ano. Pobres já nós somos, como recordou Passos Coelho. Estranha coincidência: a parte inferior do rosto de Passos é incrivelmente idêntica à de Salazar. A vingança de um sorri para nós na sobranceria do outro. Resta, pois, a rua, morada comum da raiva.

Genebra, Outubro-Dezembro de 2012

O Peixe Apodrece Pela Cabeça

Artigo da autoria do historiador José Pacheco Pereira, publicado no jornal PÚBLICO de 12 de Janeiro de 2012

O vírus da intriga e da divisão sempre foi a melhor garantia da intangibilidade do poder

Nós não vivemos no melhor dos mundos. Longe disso, em todos os países europeus, fora dos Balcãs e do Leste, vive-se melhor. Não vivemos também no pior dos mundos. Longe disso, em África, na Ásia, Américas do Centro e Sul e Oceânia, vive-se muito pior. Mas não podemos contentar-nos com este equilíbrio estatístico, porque não são os números absolutos que são relevantes, mas sim os relativos. Não é o que há, é o que está a mudar. O “processo revolucionário em curso” (PREC) ao contrário, que atravessamos, é um processo dinâmico, move-se, desenvolve-se num determinado sentido, alastra pelas suas margens como uma nódoa, destrói todos os dias alguma coisa. E o seu sentido é afastar-nos do melhor dos mundos e aproximar-nos do pior.

A grande incapacidade do Governo, que não é involuntária, mas voluntária, desejada, programática, é ignorar que nestes dias não é tanto a pobreza e a miséria que são características dos tempos que vivemos, mas sim o empobrecimento. O empobrecimento é um factor dinâmico muito mais importante do que a pobreza em termos de efeitos sociais e da perversidade de resultados. É evidente que o principal resultado do empobrecimento é aumentar a pobreza, mas pelo caminho destrói a fibra da sociedade, mergulha-a na apatia e na revolta, dois lados da mesma coisa, corroí-lhe o tónus moral, e faz aumentar todos os sentimentos mesquinhos.

Eu não cuido da moral individual, essa tarefa é para os moralistas e para as religiões, mas preocupa-me a moral colectiva, os sentimentos colectivos, a qualidade moral mínima de Portugal e dos portugueses, minha pátria e minha gente. Contrariamente ao que se diz, não é o “melhor de nós” que vem ao de cima com a crise, mas sim o pior de nós. Estamos a ajudar a criar uma sociedade maldosa, profundamente dividida, oscilando entre rancores e egoísmos, afectada mais do que nunca pelos efeitos desse velho provérbio de pescadores que diz que o peixe apodrece pela cabeça. E esses estragos não se apagam facilmente.

Todo o discurso público do poder é o da divisão e o apelo à luta de classes, grupos, idades, profissões, cada um contra o outro, mesmo quando a condição de cada um é a mesma do outro. Os que tinham toda a razão para fazer greve voltam-se contra os que fazem greve. Os jovens são instigados a voltarem-se contra os velhos, pensionistas e reformados. Os que têm alguns meios de vida desdenham dos que recebem subsídios de desemprego. Os que ainda não viram a sua profissão como alvo apontam a do outro como o alvo que deveria ser o seguinte. Polícias olham para os militares, os militares para os polícias. Trabalhadores do sector privado culpam os funcionários públicos, os funcionários públicos fecham-se com medo do desemprego. Os que ganham 900 euros apontam o dedo aos que ganham 1000 euros. Uma inveja social mesquinha e corrosiva perpassa tudo e todos e cada um defende o seu território, dando razão ao Governo, que aponta toda a contestação como sendo “corporativa”. Só a minha “corporação” é que não é corporativa, todas as outras são-no. O vírus da intriga e da divisão sempre foi a melhor garantia da intangibilidade do poder. E não é difícil em tempos de crise propagar estas epidemias, mas é perigoso. Porém, o medo ajuda, ajuda muito.

Antes dizia-se que o anti-semitismo era o socialismo dos imbecis, agora os nossos governantes apostam numa fractura social que faz de cada uma das partes imbecis sociais, e que, pela sua linguagem, divisões, alvos, egoísmos, servem de rebanho aos pastores deste “PREC”. A única fractura que não desejam é entre os incluídos e os excluídos, os que estão a ganhar com esta crise – poucos, mas a ganhar muito, o suficiente para o preço do Copacabana Palace ser peanuts – e os muitos que estão a perder, porque sabem que ela é socialmente perigosa. Subversiva é o termo certo. Fora disso, venha a luta de classes dos imbecis.

Os maus costumes de uma sociedade em crise, permeável a partir de cima pelos miasmas que dividem e pelo medo, estão a fazer um Portugal pior, muito pior. A mentira tornou-se uma prática quotidiana da governação. Foi-o já em doses exponenciais no Governo socrático, continua no governo passista-relvista. Todos os dias há uma nova tentativa de engano, uma manipulação, uma inquinação do espaço público, uma espertice qualquer vinda de um gabinete ou de uma agência, canhestras muitas vezes, mas sempre destinadas a enganar-nos.

Todo este processo da “refundação do Estado”, desde o anúncio patético e atabalhoado de uma “refundação do memorando” até à encenação da fuga do relatório do FMI, seguida da tentativa de controlo dos danos feita por Moedas, seguida de todos os enganos sobre a sua preparação, versões, papel do Governo, destino e intenções, é o exemplo de como a mentira se tornou a essência do discurso do poder.

Querem, o Governo e a maioria, convencer-nos seriamente de que vão “refundar” o Estado a partir de um anúncio de um corte de 4 mil milhões, escondendo-nos os compromissos já tomados sobre esse valor antes de qualquer discussão, seguido da encomenda de um relatório do FMI conhecido por uma fuga de informação de um comentador, preparado pelo Governo em peso escondido por detrás da instituição internacional, depois de novo passado aos jornais numa “versão preliminar” para preparar a opinião público do susto da definitiva, e depois, a um mês do prazo para a apresentação das propostas do Governo à troika, se apelar ao debate público organizando uma conferência de um dia com convidados escolhidos a dedo entre os próceres do “PREC” e os oposicionistas bem-comportados, juntamente com uma comissão parlamentar de fachada para pressionar o PS, tudo isto sem nunca se saber qual é a proposta do Governo que deveria estar na origem de todo o debate?

Quem colaborar com este processo está a colaborar numa mentira, a ajudar a esconder que tudo já foi acordado, e se alguma das coisas que já foram acordadas com a troika não avançar, é pelo receio dos seus efeitos eleitorais. Como é que nos podemos surpreender por os “de baixo” – os novos inimigos do Governo, restaurantes, cabeleireiros e oficinas de reparação de automóveis – fugirem ao fisco, se os “de cima” fogem à verdade? Tudo o resto é nevoeiro.

A grande falácia deste “PREC” é pensar que a sociedade, a economia e as empresas podem de repente, feito o “ajustamento”, iniciar um arranque glorioso para o crescimento económico e para a melhoria social, quando o que o empobrecimento faz à sociedade é retirar-lhe todo o potencial criativo e força anímica para qualquer reacção que não seja a sobrevivência egoísta e nalguns casos a exploração abusiva da situação em termos próprios. A morte da “classe média”, de que CDS e PSD eram no passado os grandes arautos, é a receita melhor para destruir qualquer dinamismo, retirar à sociedade qualquer potencial de crescimento. Podem fazer mil programas de televisão sobre o “pensamento positivo”, sobre o “Portugal melhor”, premiar em cerimónias televisivas os jovens “empreendedores”, “inovadores”, “inventivos”, que estão apenas a alimentar a ilusão de que qualquer dessas qualidades pode sobreviver numa sociedade que está a ser construída para que eles emigrem se querem ter sucesso, ou vão à falência debaixo do jugo dos impostos e da crise.

Seria, aliás, muito educativo revisitar muitas das iniciativas apresentadas com parangonas televisivas como de “sucesso” e de “futuro” em 2010, 2011, 2012 e ver onde é que elas estão em princípio de 2013. Não estão em lado nenhum porque a sociedade que este “PREC” está a gerar é destrutiva, paroquial, subserviente, sem oportunidades para os bons e cheias de oportunidades para os maus, que as percebem à distância. Parece maniqueísmo? Antes fosse. Mas a responsabilidade é nossa. Edmund Burke escreveu-o: “Tudo o que é necessário para o triunfo do mal é que os homens bons não façam nada”. Sempre podem cortar a cabeça ao peixe, deitar o peixe fora e arranjar outro. É difícil, mas não é impossível.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

A Sinistra Intenção

Embora assinado apenas com iniciais, recebi por e-mail o texto que passo a transcrever. O seu conteúdo tem sentido e oportunidade, deve ser lido e digerido, pois não há nada pior do que sermos apanhados desprevenidos.

«Quem disse que é bom ter um português como presidente da Comissão Europeia, que neste caso importante se manteve em silêncio como cúmplice desta sinistra intenção ? Se hoje em França não fosse Hollande o presidente, continuaríamos na total ignorância por falta de divulgação na imprensa desta tramoia, que continuaria escondida numa gaveta dos governos ultra-liberais da Europa ao serviço dos Bilderberg's Group. Esta directiva existe desde Dezembro de 2011, já depois de o governo de Passos Coelho estar em funções. Alguém ouviu ou leu algo a seu respeito na imprensa portuguesa ? Pois...

A proposta de Directiva da União Europeia relativa aos contratos públicos, em apreciação no Parlamento Europeu, é um novo exemplo do processo em curso de destruição do chamado “modelo social europeu” e de regressão social e democrática do espaço europeu. Convertendo a União Europeia num espaço económico e político inteiramente comandado pelos mercados financeiros e por um ultraliberalismo suicidário. É também uma boa ilustração de como o diabo está nos detalhes.

A intenção de liberalizar e privatizar a segurança social pública é remetida para um anexo (o Anexo XVI) dessa proposta de directiva, mencionado singelamente como dizendo respeito aos serviços “referidos no artigo 74º”, sendo aí listados os serviços públicos que passariam a ser sujeitos às regras da concorrência e dos mercados:

- Serviços de saúde e serviços sociais
- Serviços administrativos nas áreas da educação, da saúde e da cultura
- Serviços relacionados com a segurança social obrigatória
- Serviços relacionados com as prestações sociais

Entre estes, avulta a intenção expressa de privatizar a segurança social pública, a par dos serviços de saúde e outros serviços sociais assegurados pelo Estado. Um alvo apetecido do capital financeiro em Portugal e no espaço europeu, que há muito sonha com a possibilidade de deitar a mão aos fundos da segurança social e às contribuições dos trabalhadores, sujeitando-os inteiramente às regras da economia de casino.

E como o fazem? À socapa, para ver se escapa à atenção e vigilância públicas. Um mero anexo, que remete para um mero artigo, nesta proposta de directiva em discussão.

Só que o artigo em causa (o 74º) diz que “os contratos para serviços sociais e outros serviços específicos enumerados no anexo XVI são adjudicados em conformidade com o presente capítulo”. Neste, relativo aos regimes específicos de contratação pública para serviços sociais, estabelece (artigo 75º) a regra do concurso para a celebração de um contrato público relativo à prestação destes serviços. E logo de seguida, enumerando os princípios de adjudicação destes contratos (artigo 76º), é estabelecida a regra de que os Estados-membros “devem instituir procedimentos adequados para a adjudicação dos contratos abrangidos pelo presente capítulo, assegurando o pleno respeito dos princípios da transparência e da igualdade de tratamento dos operadores económicos…”

Uma perfeição. De um golpe, escondido num anexo e numa directiva que daqui a uns tempos chegaria a Portugal, ficaria escancarada a porta para a privatização da segurança social pública e para a tornar inteiramente refém dos mercados financeiros. Que são gente de toda a confiança e acima de qualquer suspeita. Como esta crise tem comprovado. Ou não andamos nós há muito a apertar o cinto (e a caminho de ficar sem cintura) para merecermos o respeito e a confiança dos mercados financeiros, nas doutas palavras de Coelho & Gaspar, acolitados pelos representantes no Governo português dos interesses da Goldman Sachs, António Borges e Carlos Moedas? E, como também nos têm explicado, o que é bom para a Goldman Sachs e os mercados financeiros, é bom para Portugal e os portugueses.

Este golpe surge, como não podia deixar de ser, sob o alto patrocínio desse supremo exemplo de carreirismo e cobardia política chamado Durão Barroso que, além de se ter pisgado do governo português com a casa a arder, tem no seu glorioso currículo o papel de mordomo das Lajes na guerra do Iraque e, agora em Bruxelas a fazer de notário dos poderosos, faz jus ao seu nome sendo durão ultraliberal com os fracos e sempre servente dos mais fortes. Como é bom ter um português em Bruxelas!

Claro que isto anda tudo ligado. Esta proposta de directiva tem relação com os golpes sucessivos infligidos à segurança social pública em Portugal, com a operação para já frustrada em torno da TSU, com os insistentes cortes de direitos sociais, com os recorrentes argumentos do plafonamento e da entrega de uma parte das pensões ao sistema financeiro. Afinal, a lógica ultraliberal de que o melhor dos mundos será quando, da água à saúde, da educação à segurança social, tudo e toda a nossa vida estiver controlada pela lógica dos mercados e do lucro. Ou seja, pela lei do mais forte. Que é também coveira da democracia. E o Estado contemporâneo abdicar, como tarefa central, da sua função redistributiva e de redução da desigualdade social e regressar à vocação residualmente assistencialista do Estado liberal do século XIX.

Como refere o deputado socialista belga no PE, Marc Tarabella, “privatizar a segurança social é destruir os mecanismos de solidariedade colectiva nos nossos países. É também deixar campo livre às lógicas de capitalização em vez da solidariedade entre gerações, entre cidadãos sãos e cidadãos doentes…”, lembrando os antecedentes da sinistra proposta designada com o nome do seu autor por directiva Bolkestein (Bilderberg's member), e exigindo a eliminação da segurança social desta proposta de directiva.

É preciso defender a Segurança Social (e a Saúde e a Educação públicas) como uma prerrogativa do Estado e um sector não sujeito às regras dos Tratados relativas ao mercado interno e da concorrência. Para não termos um dia destes os nossos governantes e os seus comentadores de serviço, com a falsa candura de quem nos toma por parvos, a explicarem que vão entregar a segurança social pública aos bancos e companhias de seguros porque se limitam a cumprir uma decisão incontornável da União Europeia, como já estão a fazer na saúde e na educação. Decisão pela qual, evidentemente, diriam não ser responsáveis. Como é próprio dos caniches dos credores. E acrescentando sempre, dogma da sua fé neoliberal, que nada melhor do que a concorrência e a privatização para baixar os custos e proteger os “consumidores”, aquilo em que querem converter os cidadãos. Como se vê nos combustíveis, nas comunicações ou na electricidade. Tudo boa gente.

É preciso levantar a voz e a resistência social e política à escala europeia contra este projecto, antes que seja tarde demais. Em defesa da Segurança Social pública e do Estado Social. Garante de democracia e de menos desigualdade social.

TVP»

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

REQUERIMENTO

Exmos. Senhores

Ministro da Educação e Ciência
Prof. Doutor Nuno Crato
Avenida 5 de Outubro, 197
1069-018 Lisboa

 e

Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros
Dr. Paulo Portas
Palácio das Necessidades, Largo do Rilvas
1399-030 Lisboa

REQUERIMENTO

Madalena Homem Cardoso, portadora do B.I. nº (), emitido pelos S.I.C. de Lisboa em (), mãe e Encarregada de Educação de Inês (), aluna nº () da turma () do 3º ano da EB1 (), em Lisboa, na sequência da Carta Aberta por si dirigida a S. Exa. o Senhor Ministro da Educação com data de 24/03/2012, para a qual não logrou obter qualquer resposta durante os mais de nove meses desde então decorridos, vem interpelar Vossas Excelências por via do presente requerimento, tendo em conta que:

(1) Toda a exposição contida na aludida Carta Aberta (reproduzida aqui) se mantém actual e pertinente, e bem assim se mantêm incontestados os fundamentos que justificaram e justificam o inflexível posicionamento da requerente quanto à introdução do dito “acordo” dito “ortográfico” (AO90) na aprendizagem escolar da sua filha e educanda, no que entende ser uma responsabilidade sua que não delega, de que não se demite, no exercício do poder-dever parental.

(2) Enquanto cidadã, resta à requerente verificar tratar-se de um enorme conjunto de crianças em processo de alfabetização que está a ser lesado de modo grave e irreversível no que de outra forma seria a sua plenipotenciária aprendizagem da Língua Portuguesa escrita. As crianças, muitos milhares de crianças, estão a ser privadas do contacto estruturado e estruturante com as subtilezas e complexidades do idioma em tempo oportuno do seu desenvolvimento cognitivo – tal qual se tratasse de um instrumento musical que requer um contacto irrestrito precoce para ser dominado com a possibilidade de atingir patamares de excelência, não de mera competência básica.

(3) Por efeito da Resolução do Conselho de Ministros (RCM) nº 8/2011, o Ensino Básico foi atingido na leva da Administração Pública, com negligência grosseira, sem a prudência mínima exigível de atender aos pareceres idóneos existentes, ou de promover estudos técnicos credíveis prévios, quanto aos impactos expectáveis desta medida administrativa acrítica, assentando na ignorância e promovendo a ignorância, naquela que é talvez a mais nobre função do Estado, a de assegurar a transmissão de saberes, em particular os da herança histórico-cultural colectiva, aos mais jovens, independentemente do seu contexto social. Decorre o segundo ano lectivo desde que estes foram tornados cobaias de uma experiência desastrosa, contrária à vontade da maioria esmagadora da população e prosseguida à revelia do entendimento unânime dos especialistas (exceptuados os autores-usufrutuários do atentado cultural em curso).

(4) Por se tratar de “directiva da tutela” que começou a “vigorar” (embora ilegalmente, de acordo com diversos pareceres jurídicos) no ano lectivo de 2011-2012 e foi “diligentemente” seguida pelos dois grandes grupos editoriais que monopolizam o mercado dos livros escolares (Grupo Leya e Grupo Porto Editora), os professores viram-se compelidos a “recomendar” a aquisição de manuais redigidos no que a requerente vem designando, informalmente, por um “acordês-mixordês” errático, o qual conta com o beneplácito de uma obscura entidade certificadora. Desta forma surge o texto nos livros escolares, também porque os instrumentos que é suposto assumirem o modo oficial de aplicar o AO90 contradizem as disposições nele contidas (tal como os dicionários e “corretores” ortográficos privados variam nas interpretações do AO90, são discrepantes entre si e com os instrumentos oficiais). Porém, perante a “recomendação” de manuais feita pelos professores que, por larga maioria, se acham igualmente reféns, sentem-se os Encarregados de Educação – com poucas excepções, entre as quais a requerente se inclui – intimados a adquirir livros escolares onde o Português surge delapidado, isto é, forçados a subsidiar (e este subsídio não é despiciendo no orçamento da maior parte das famílias!) tais actos de vandalismo cultural, patrocinando antecipadamente um ensino inquinado por esses atropelos, sob pena de os seus educandos terem “faltas de material”, e assim o Estado indirecta e perversamente impõe aos cidadãos que sustentem os negócios vários que se fazem à custa do património identitário de todos e de uma deficiente aprendizagem dos mais novos, cujas sequelas são graves e irreparáveis.

(5) Surge na Declaração Final emanada da VII Reunião de Ministros da Educação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), de 31/03/2012, da qual S. Exa. o Senhor Ministro da Educação foi co-signatário, a admissão de que a aplicação do AO90 enferma de “constrangimentos e estrangulamentos” (sic), pelo que a mesma Declaração Final delibera seja feito um diagnóstico desses problemas com vista à “apresentação de uma proposta de ajustamento ao Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa de 1990? (sic), ou seja, uma revisão da redacção do AO90 enquanto tratado internacional cuja aplicação prática está a ser feita exclusiva e unilateralmente por Portugal. Desta, os resultados calamitosos são observáveis em todos os domínios (pelo apagamento da etimologia, pela desagregação de famílias de palavras e de conexões de sentidos, pela perda do vínculo com as outras grandes línguas cultas europeias transcontinentais, pelas repercussões intoleráveis na terminologia técnico-científica e nos vocabulários especializados, etc.). Instalou-se um caos “heterográfico” que a todos os portugueses cobre de ridículo (vide a nossa apresentação “Caos Ortográfico em progressão para o Linguicídio”, em anexo), o qual vem cilindrando a outrora estável variante euro-afro-asiática-oceânica do Português, apenas neste país que fez em tempos aportar noutros continentes a matriz comum. Eis de uma longa construção a rápida destruição, despudorada e mercantil, prospectiva (ao lesar o ensino da língua aos mais novos) e retrospectiva (ao pretender achincalhar por esta via todo o património literário).

(6) A despeito do iminente diagnóstico, para posterior revisão, ou “ajustamento” (sic), do texto do AO90, ambos sine die, na sequência da deliberação conjunta assinada na referida declaração pelo Senhor Ministro da Educação de Portugal, são canalizados subsídios públicos definitivos para reedições provisórias, num incompreensível afã de “atualizar” o acervo das bibliotecas escolares, mesmo sendo óbvia a sua rápida obsolescência. De facto, ou haverá uma necessidade futura de “re-reeditar” (após o “ajustamento” projectado) tudo que agora for reeditado, ou então haverá que descartar estas reedições para a reciclagem de papel, sendo que o AO90 em si mesmo não é “reciclável”, em razão da sua “multi-toxicidade” – aquela que lhe advém das excepções, das facultatividades, dos erros, das falsas premissas.

(7) O teor do Decreto nº 7875, assinado em 27/12/2012 pela Senhora Presidente da República Federativa do Brasil, protelando a aplicação obrigatória do AO90 neste país para 2016, não só faz prever o advento de um decreto análogo em Dezembro de 2015, considerando a tradição histórica brasileira neste domínio, como ainda permite inferir que a referência aos “constrangimentos e estrangulamentos na aplicação do Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa de 1990? (sic) tenha surgido na Declaração Final da VII Reunião de Ministros da Educação da CPLP, não por iniciativa de Portugal (por amor-próprio ou elementar bom senso), o único país signatário que temerariamente encetou uma tentativa desconexa e irresponsável de aplicação prática do AO90, mas sim por iniciativa do Brasil, país onde a comunidade científica e a comunidade docente são auscultadas pelos decisores políticos, e onde parece prevalecer a teoria de que deverá aproveitar-se a oportunidade – presume-se oportuna a ostensiva permeabilidade de Portugal ao “linguicídio” – para introduzir-se uma radical simplificação no idioma, eventualmente com extinção da letra “h” (“consoante muda” mais muda não há…), entre outras ideias aventadas como contributos para a invenção da novilíngua do Brasil (cfr. George Orwell, “1984?).

Em vista destas verificações, atenta a gravidade do assunto em apreço, e ao abrigo do disposto nos nºs 1 e 2 do artº 268º da Constituição da República Portuguesa (CRP), respeitante aos direitos e garantias dos administrados, no nº 1 do artº 52º da CRP, relativo ao direito de petição, e no nº 2 do artº 48º da CRP, que consagra o direito de participação na vida pública [cfr. artº 9º, nº 1, proémio, do Código do Procedimento Administrativo, cfr. também alíneas a) e b) do mesmo preceito; cfr. artº 104º, nº 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos], vem a requerente solicitar a Vossas Excelências se dignem informá-la (tornando público) se houve algum ou alguns estudos ou pareceres que, apresentado(s) por algum ou alguns dos representantes dos países membros da CPLP na referida VII Reunião de Ministros da Educação, incluindo Portugal, tivesse(m) servido de fundamento ou respaldo das afirmações e deliberações contidas no ponto 3 da Declaração Final dela resultante. Cumulativamente, a requerente vem solicitar a Vossas Excelências se dignem prestar informação sobre a existência de outros estudos ou pareceres incidindo sobre o AO90 e/ou sobre a aplicação deste, posteriores à publicação da RCM nº 8/2011, que tenham chegado ao conhecimento do Governo de Portugal, fora do âmbito da cimeira referida, de proveniência nacional ou oriundos de países terceiros.

Caso existam tais documentos, e igualmente ao abrigo da legislação acima invocada, vem a signatária requerer ainda a Vossas Excelências lhe seja dado (fazendo-os públicos) conhecimento integral do conteúdo dos mesmos.

Pede deferimento,

Lisboa, 8 de Janeiro de 2013

[assinatura conforme B.I.]