sábado, 30 de novembro de 2013

O Natal do doutor Estevão

ASSIM que o doutor Estevão foi admitido naquela empresa, entre os que lá trabalhavam, instalou-se uma natural espectativa. Estava-se a meio da década de 80 do século passado, e as exigências da actividade da empresa obrigaram a que se efectuassem algumas admissões, e o doutor Estevão da Várzea foi uma delas. Trazia consigo um notável currículo. Falava fluentemente inglês e francês, algum espanhol, inicialmente tirara um curso de contabilista, depois de regente agrícola, tendo-se finalmente licenciado, primeiro em matemáticas e depois em direito, enfim, tudo habilitações com pouca ou nenhuma relação entre si, porém, as referências que trazia das empresas por onde tinha passado, atestavam a sua grande competência em todas as funções que desempenhara. No dia em que foram feitas as apresentações, toda a gente torceu o nariz. O doutor Estevão parecia uma figura saída de uma banda desenhada. Era magro, de estatura média, andava desengonçado em cima de umas pernas exageradamente arqueadas, vestia-se com roupa amarrotada e desirmanada, que parecia não lhe pertencer, umas vezes uns números abaixo, outras vezes uns números acima, a cabeleira parecia nunca ter visto um pente, encavalitava no nariz uns óculos de lentes grossas, que lhe reduziam os olhos a dois minúsculos pontos negros, e embora se exprimisse com clareza, falava incrivelmente depressa e de forma atabalhoada. Logo houve quem lhe apontasse semelhanças com o actor Woody Allen, embora numa versão para muito pior.

Foi ocupar uma secretária na área administrativa da empresa, um desalinhado "open-space" onde todos conviviam mais ou menos pacificamente, muito embora o decibéis tivessem tendência para subir, quando acontecia todos falarem ao mesmo tempo, cada um nas suas tarefas, mais o retinir dos telefones e as caóticas conversações cruzadas que se entabulavam. O doutor Estevão tinha umas funções um bocado indefinidas, e para ser preciso, era aquilo que se costuma apelidar de um pau para toda a obra, um bombeiro que tanto apagava fogos aqui e ali, nas mais variadas matérias, como ajudava no acertos das folhas de caixa, balancetes contabilísticos, traduções e retroversões, consultor jurídico, aconselhamento na administração corrente, no lançamento de novos produtos, nas dicas e ajudas ao programador do IBM 34, diligências junto dos gerentes bancários e inspectores das finanças, em suma, um homem que tocada quase todos os instrumentos, mesmo sem saber patavina de música. Em poucos meses transformou-se numa espécie de "manda-chuva", intervindo em todos os quintalinhos da empresa, com uma autoridade simplória e descomprometida, desejada e consentida, porque na verdade, resolvia problemas sempre com franqueza e camaradagem, no meio de risadas e dos destemidos "vamos a isso", e quando não sabia, manifestava-o com humildade e pedia conselhos. Passada a fase de "manda-chuva" passou a ser apelidado de "maestro", uma espécie de chefe de orquestra, a que todos recorriam quando era preciso acertar compassos, quando alguém desafinava, as pautas se baralhavam ou as coisas se complicavam. E o doutor Estevão, que ninguém sabia a que horas chegava, mas que acabava sempre por chegar, arquejante e esbaforido, abraçado a montes de papéis e a equilibrar-se nos sapatos cambados, acabava sempre por solucionar, com mais ou menos saber, com mais ou menos arte, com mais ou menos improviso, qualquer imbróglio. E falava desalmadamente, sem lhe faltar o ar, e no meio dos discursos, disparava piadas minúsculas, anedotas e graçolas parvas, rindo histriónica e desajeitadamente dos seus próprios ditos, para logo de seguida mergulhar na solução dos problemas, com ar sério e compenetrado, sempre a empurrar os óculos que continuamente lhe deslizavam pela cana do nariz.

Tinha uma velha carrinha com os bancos traseiros rebatidos, permanentemente estacionada à porta da empresa, e que servia para guardar a bicicleta todo-o-terreno em que habitualmente se deslocava, quando estava bom tempo. Fora isso, andava sempre de táxi. A rir desabridamente, argumentava que era muito mais cómodo e económico usar os táxis, pois livrava-se das revisões e manutenções do velho Opel, não se enervava nem desgastava com as agruras do trânsito e até podia ir adiantando trabalho - quando não deixava papéis esquecidos no banco traseiro, e que invariavelmente eram prontamente devolvidos -, além de que desfrutava do luxo de ter um chauffeur com quem podia entabular conversa, trocar anedotas e saber novidades. A sua carrinha, dizia ele, para além de ser a garagem itinerante da bicicleta, apenas a usava para as grandes distâncias ou para ir às compras do mês. Soube-se que tinha filhos, um par de gémeos, e quando lhe pediram para mostrar as fotografias das crianças, entre duas risadas, foi peremptório: Querem crer, nunca lhes tirei uma fotografia! São muito feios, os meus queridos são muito mais feios do que eu, são tão feios que quando olho para eles fico assustado...

Cada dia trazia sempre novas surpresas. O doutor Estevão tanto podia chegar de fato e gravata e calçado com ténis, como vir de fato de treino e boné, toalha ao pescoço e os habituais sapatos cambados. Quando aparecia assim, tão desconcertadamente ataviado, era certo que tinha começado o dia com uma sessão de jogging, pois cuidava da sua condição física. Que era adepto de desportos radicais, só se veio a saber largos meses depois, quando numa dada segunda-feira não compareceu ao trabalho, e a mulher telefonou a dizer que ele tinha sofrido um acidente no Rio Paiva, quando praticava rafting, e que andavam a ver se o conseguiam encontrar. Arrastado pela corrente, acabou por aparecer a quinze quilómetros do local do acidente, por um pastor que tinha ido dar de beber ao gado. Voltou ao trabalho três ou quatro dias depois, a ostentar ainda algumas nódoas negras, esfoladelas e outras equimoses, e a brandir aquela desculpa: O que é que querem, o rio estava bravo, depois veio um calhau direito a mim e a chalupa virou-se! Vá lá, perdi o remo e o capacete, mas consegui salvar os óculos e o relógio..., seguida de uma risada tonitruante e repenicada, mais um esbracejar a condizer com a caricatural aflição por que tinha passado. Mas isto não é nada! Acrescentou ele. Antes do rafting eu praticava escalada solitária, bem, até ao dia em que fiquei durante três dias, num penhasco do Gerês, pendurado no vazio pelo arnês, com a corda segura apenas por um mosquetão, a mais de cem metros de altura. Não fosse ter passado por ali um praticante de asa delta, que foi dar o alarme, não sei como aquilo teria acabado... Para o bem ou para o mal, coincidência ou não, isto aconteceu-me na mesma altura da aparição do cometa Bowell-Skiff. Há cada coisa!

Mas a sua imagem de marca tinha sobretudo a ver com o calçado, peça que durante um dia de trabalho ia descalçando aqui e ali, nas alturas e locais mais inusitados, ao sabor do incómodo que lhe provocavam. Aplicava a biqueira de um contra o calcanhar do outro e já está. Indiferente aos orifícios que pudesse ter nas peúgas, tanto podia descalçá-los a meio de uma conversa informal, numa ida aos lavabos, no balcão do restaurante onde petiscava, como a meio de uma reunião de administração ou no ambiente austero da sala de um tribunal, onde certo dia, durante uma troca de argumentos, também eles intervalados com comentários, piadas parvas e gargalhadas estereofónicas, a juíza fez questão de o interromper com um: ó senhor doutor, tenha propósitos, ajeite a sua beca, calce-se e veja lá se domina a sua excitação. Invariavelmente, e voltando aos sapatos, libertava-se deles de forma automática e esquecia-se quase sempre de os recuperar. Entretanto, havia sempre alguém ali por perto que lhe dizia: ó doutor, não se esqueça, olhe que os seus sapatos ficaram ali!.

Fora estes episódios sempre diferentes, que emolduravam o dia-a-dia, suplantando a rotina, a actividade da empresa corria de vento em popa. Nunca se tinha trabalhado tanto e com tanto gosto como agora. Fosse graças a factores de conjuntura, como é hábito dizer-se, ou fosse porque o "open-space", por obra e graça do "maestro" Estevão da Várzea, funcionasse como uma equipa coesa e quase perfeita, por vezes como um autêntico e aguerrido grupo de combate, os tempos eram outros, mais risonhos que os de antanho, tendo subido os níveis de produtividade e de boa disposição. Todos se lembram de ter visto o doutor Estevão em peúgas e dedo em riste, a mastigar uma sanduiche de torresmos e a bradar todo esganiçado: a baliza do adversário é ali, aqui ninguém joga à defesa, temos que ganhar o jogo, quero ver todos, mas mesmo todos sem excepção, a jogar ao ataque, a chutar para dentro daquela baliza. E era assim que todos sentiam a causa da empresa como coisa sua, em que ficar de vigília uma noite inteira em frente do fax, à espera da confirmação de uma adjudicação, não era um sacrifício mas sim uma agradável conquista. E isso reflectia-se na facturação, e por acréscimo, numa significativa melhoria dos salários.

Mas, tal como diz o provérbio, não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe. Também naquela empresa começaram a soprar outros ventos, assim que o presidente manifestou o desejo de resignar, passando o testemunho a outro. Se por um lado havia grande sucesso e desafogo económico, por outro, com aquela perspectiva de mudança nos andares cimeiros, começaram a despontar as ambições, sendo a mais notória a do próprio filho do presidente, um jovem que tinha tanto de pedante e intratável, como de autoconvencido, que andava por ali a flanar a sua prosápia e a quem não se reconhecia nenhuma virtude, qualidade ou competência. O presidente sugeriu à família - porque de uma empresa familiar se tratava - que o seu lugar de timoneiro fosse preenchido por alguém com provas dadas e perfil de líder, e sugeriu o doutor Estevão como a sua escolha. Marcou uma reunião com todos os administradores e directores, na qual seria oferecido ao doutor Estevão o apetecido lugar. Diz quem assistiu à entrevista que o doutor Estevão, logo que se sentou, descalçou os sapatos, aconchegou o ambiente com duas ou três piadas rápidas, mas depois falou sem titubear, com a sua conhecida desenvoltura. Quando o presidente, sob o olhar contrariado do filho, lhe ofereceu o lugar de presidente, aclarou a garganta, desdobrou um insólito gracejo e logo acrescentou que o seu terreno de eleição eram os múltiplos campos de batalha, não a grande guerra propriamente dita, em resumo, era mais um táctico que um estratega. Esse objectivo, disse ele, deixava-o aos fidalgos, aos catedráticos. Não sou pessoa - disse ele - que se afoite a dar passos maiores que a perna, e tenho-as bem compridas, como todos sabem. Mencionou que o apelidavam de "maestro", aliás, não podiam ter escolhido melhor nome, e por isso mesmo, sabia que podia ser um bom maestro, mas que talvez nunca pudesse vir a ser um bom compositor, um verdadeiro criador. Deixava isso a quem se sentia entusiasmado e vocacionado para tal, às pessoas mais ambiciosas e mais bem relacionadas, coisa que ele não era. A sua recusa marcou o fim da entrevista. O filho do presidente ajeitou a gravata, abotoou o casaco, passou a mão pela melena e deitou um sorriso rasgado à audiência, como quem diz, estão a ver, eu não dizia, o gajo não passa de uma fraude, de um plebeu desqualificado, incompetente e sem futuro.

As coisas seguiram o seu curso. O velho presidente recolheu-se à sua quinta de Ourém e o filho ocupou o cadeirão de chefe máximo, começando a fazer profundas transformações na empresa. Compartimentou o "open-space" em secções autónomas separadas por biombos, admitiu para as chefias alguns dos seus amigos, fez ajustamentos seguidos de reajustamentos, dispensou pessoal ao abrigo de uma política de redução de custos, seguidas de mais umas quantas patetices desprovidas de sentido. De todas estas transformações resultou que o anterior desafogo económico da empresa se começou a contrair, começando a perderem-se clientes, encomendas e contractos. Em resposta a isso vieram mais cortes, mais despedimentos, mais episódios de administração descontrolada, ao passo que ao abrigo das novas técnicas de gestão que começavam a despontar, nomeadamente o "outsourcing", foi contratado um escritório de contabilidade e uma empresa de informática, que deixaram ainda mais depenada a fraca tesouraria. E não havia doutor Estevão da Várzea que conseguisse travar aquele mergulho no abismo, para mais, remetido como estava agora a uma quase simbólica função de assessor da administração, ao abrigo da qual nunca foram pedidos os seus préstimos, e com todo o pessoal expressamente proibido de lhe pedir conselho sobre que matéria fosse. Pelo meio, por portas e travessas, alguém começou a fazer constar que havia dúvidas quanto à autenticidade das suas habilitações académicas.

Com isto o caldo entornou-se e o doutor Estevão da Várzea não esperou pela desconsideração seguinte. Uma tarde sentou-se à secretária, descalçou os sapatos, massajou os pés, meteu papel na máquina e escreveu uma carta a pedir a demissão, respeitando o prazo legal para o efeito que, coincidência ou não, o libertava da empresa exactamente quatro dias antes do Natal. Assinou a carta, tirou uma fotocópia para si e enviou o original para a administração. No dia aprazado, encheu a pasta com os seus poucos pertences, despediu-se de todos os que tinham trabalhado com ele e saiu. Tinham passado quatro anos e meio desde que ali chegara da primeira vez, mas nem olhou para trás, para ver os rostos dos que estavam a contemplá-lo por trás das vidraças. Meteu-se no sua velha carrinha Opel e preparou-se para ir passar o Natal junto da mulher e dos seus queridos gémeos, mais feios que o próprio pai.

Na manhã da véspera de Natal, dia 24 de Dezembro, chegou â empresa uma encomenda embalada num caixote estreito, com umas insólitas dimensões, dirigida ao presidente da administração. Sua excelência, convenientemente avisada e cheia de curiosidade, desceu até ao rés-do-chão e pediu para desembalarem a coisa. Tiradas as cintas e despregadas as tábuas, e perante os olhares incrédulos dos empregados que entretanto se tinham começado a juntar, lá dentro vinha uma bicicleta usada, modelo todo-o-terreno, enfeitada com uma coroa natalícia, e com ela uma missiva dirigida a sua excelência, e que rezava assim: Como prenda e desejos de um feliz Natal, aqui lhe deixo esta bicicleta para que com ela possa ir dar uma grande volta. Estevão da Várzea.

sábado, 2 de novembro de 2013

Intervenção do deputado do PCP, João Oliveira, na Assembleia da República em 1 de Novembro de 2013

«Senhora Presidente,
Senhoras e senhores Deputados,
Senhoras e senhores membros do Governo,

Ontem, ao fim de 8 horas de debate, veio da bancada do CDS uma referência paradigmática na discussão deste Orçamento do Estado: desde 1943 que o Estado não apresenta um saldo primário positivo.

A gravidade destas palavras comprova que o que aqui discutimos não é apenas a diferença entre despesas e receitas do Estado ou de pequenas opções que se façam em cada uma dessas dimensões. O que discutimos hoje é um projeto político para o país, para a vida de cada um daqueles que todos os dias levantam este país.

O país que o Governo e a maioria propõem com este Orçamento do Estado para 2014 é pela própria maioria comparado com esse Portugal de 1943, um país com uma economia de guerra, um país política e socialmente esmagado pela pobreza e o atraso impostos por Salazar.

Não avaliando o acerto das contas feitas na comparação, compreendemos que seja esta a referência da maioria.

O país vive, de facto, há três anos com uma economia de guerra, ainda que não se dispare um tiro. Ao povo foi imposto um verdadeiro esforço de guerra com o esmagamento de direitos, o roubo de salários e pensões, o desemprego, a pobreza e a emigração.

E o que este orçamento anuncia é que essa guerra não tem fim próximo. O projeto político do Governo não está plenamente concretizado nem é temporário.

Apesar do empobrecimento generalizado com que reduziu os custos do trabalho e das condições que já criou para que a riqueza nacional se concentre cada vez mais nos cofres de um punhado de grupos económicos e financeiros, o Governo quer um Estado configurado à medida desses interesses.

Um Estado que assegure esse controlo da riqueza por uma meia dúzia de poderosos e que tenha condições de impor a exploração de quem trabalha, negando os direitos económicos, sociais e laborais aos trabalhadores e ao povo.

Um Estado incompatível com a nossa Constituição e a democracia.

E são o próprio Governo e a maioria que afirmam que esse não é um projeto conjuntural.

De cada vez que Governo e maioria afirmam que não se podem desperdiçar os sacrifícios já feitos, que com a suposta saída da troica e o fim do Pacto não podemos voltar ao desgoverno em que vivíamos antes, o que querem dizer é que os cortes são para manter, que o desmantelamento das funções sociais do Estado é para continuar, que o agravamento da exploração e das desigualdades é o verdadeiro desígnio nacional da sua política.

Senhora Presidente,
Senhoras e senhores Deputados,
Senhoras e senhores membros do Governo,

O debate deste Orçamento do Estado para 2014 confirmou o falhanço em todos os objetivos que justificaram a assinatura do Pacto da troica e comprovou que esses objectivos eram apenas a fachada para um programa político de fundo que os subscritores do Pacto continuam a querer esconder.

Há dois anos e meio o Pacto era assinado em nome da redução da dependência externa, do endividamento e do défice, em nome de reformas estruturais inadiáveis, em nome do combate à recessão e ao desemprego.

No debate deste orçamento confirmou-se que nenhum desses objetivos foi atingido sem que isso tenha sido motivo de preocupação para o Governo.

Teremos em 2014 um país mais dependente do exterior em termos financeiros e em termos económicos.

O Governo e a maioria que defendiam o Pacto para pôr fim ao endividamento, propõe-se continuar a aumentar a dívida em 2014 para mais de 200.000 milhões de euros.

Depois de sucessivas revisões por incumprimento dos limites do défice acordados com a troica, o Governo propõe para 2014 um limite de 4%, objetivo tão irrealista que ontem, na falta de qualquer outro argumento, acabou por ser sustentado pela senhora Ministra das Finanças apenas com a sua própria profissão de fé.

Em matéria de reformas estruturais, também neste debate se confirmou que a única reforma que o Governo pretende e sabe fazer é despedir, cortar, empobrecer, desmantelar, destruir.

A reforma do Estado, apresentada pelo Vice Primeiro-Ministro Paulo Portas em letra de tamanho 14, espaçamento duplo e muito espaço entre parágrafos, é exemplo disso. De ideias novas, nada, mas muita repetição de medidas já tomadas e em curso ou de propostas velhas sobre a destruição do Estado democrático que constam há dezenas de anos dos programas eleitorais e propostas de revisão da Constituição de PSD e CDS.

Neste debate orçamental foi igualmente reveladora a discussão das perspectivas económicas e do desemprego.

Como é que o Governo sustentou a perspectiva de aumento do PIB em 0,8% inscrita do Orçamento do Estado? Com dificuldade, teimosia e vacuidade.

Com a dificuldade de quem sabe que todos os indicadores económicos, até os inscritos no Orçamento do Estado, fazem duvidar dessa previsão. Com a insuportável teimosia de quem continua a não querer considerar os efeitos recessivos da austeridade que em 2014 será agravada. E com a vacuidade de quem olha para a economia à espera de milagres, como faz o Ministro da Economia, Pires de Lima.

O Ministro da Economia, aliás, não deixou de abrilhantar a discussão cumprimentando o patrão com o chapéu dos outros, recolhendo como méritos do Governo o esforço feito por muitos empresários, particularmente pequenos e médios empresário, e a melhoria registada pelo INE na atividade económica do segundo trimestre.

Esqueceu-se foi de dizer que a esses empresários vai aumentar em 2014 o Pagamento Especial por Conta em 75%.

Esqueceu-se de dizer que o INE afirma que foi o aumento da procura interna o fator responsável pela ligeira melhoria económica registada no segundo trimestre, ao contrário do que faz o Governo que insiste na prioridade ao mercado externo e às exportações.

Esqueceu-se também, convenientemente, de estabelecer a relação entre esse aumento da procura interna e o acórdão do Tribunal Constitucional que mandou devolver o subsídio de férias que o Governo queria expropriar.

Quanto ao desemprego, nada de diferente.

Apesar de questionado e confrontado pelo PCP, o maior problema social que o país enfrenta mereceu ao Governo apenas notas de rodapé na discussão.

Sem assumir nenhuma preocupação com o drama social, pessoal e familiar de quem quer trabalhar e não tem trabalho nem salário, o Governo sustentou as suas próprias previsões de que o desemprego continuará a aumentar, atingindo 17,7% em 2014. Este é não só o número que o Governo prevê mas a dimensão do desemprego que o Governo deseja.

O Governo faz do desemprego uma peça central da sua estratégia porque sabe que sem este nível de desemprego teria muito mais dificuldades em impor cortes de salários, aumentos de horários de trabalho, despedimentos. E também por isso quer continuar a contribuir ativamente para o desemprego despedindo em 2014 mais 30.000 trabalhadores da Administração Pública.

Quis o destino e a conferência de líderes que se fizesse o encerramento deste debate orçamental no extinto feriado do Dia de Finados, o feriado de Todos os Santos.

A extinção de feriados foi justificada pelo Governo com o prejuízo para o país de tantos feriados que impediam a produção, com a necessidade de eliminar esses obstáculos para que o país pudesse produzir mais.

Este Governo, tão célere a eliminar feriados para que se produzisse mais, não se preocupa no entanto com o desaproveitamento de capacidade produtiva que resulta do desemprego.

Com este nível de desemprego promovido pelo Governo, em cada seis dias de trabalho há o equivalente a um dia feriado à custa dos desempregados.

Senhora Presidente,
Senhoras e senhores Deputados,
Senhoras e senhores membros do Governo,

O Governo PSD/CDS sabia desde o início que não seria pacífica a concretização de uma política que, para satisfazer os interesses do capital financeiro e dos grupos económicos, impunha aos trabalhadores medidas brutais de agravamento da exploração, de extorsão de rendimentos, de aumento de impostos e empobrecimento generalizado, de desmantelamento e reconfiguração do Estado à medida dos interesses do Capital.

O Governo PSD/CDS sabia que o programa político que tinha para executar enfrentaria a resistência e a luta dos trabalhadores e do povo e, por isso, tem desenvolvido e aprofundado o argumentário de chantagem, mistificações e falsidades com que ao longo dos últimos dois anos tem procurado responder à intensificação e desenvolvimento da luta dos trabalhadores e do povo.

Este Orçamento do Estado mantém o país convenientemente à beira do desastre económico e social para que, a coberto de um designado segundo resgate, programa cautelar ou qualquer outra designação, se mantenha a mesma política que hoje se aplica em nome da troica.

Cada corte na despesa referido neste debate é um corte na democracia e é contra esses cortes e em defesa da democracia que lá fora, às portas desta Assembleia da República, se reúnem milhares de manifestantes exigindo um rumo diferente para o país.

Com este Orçamento do Estado votado no Dia de Finados, ninguém estranharia que os sinos dobrassem à hora da votação pela democracia que daqui sairá mutilada. E poderíamos até responder ao povo que lá fora exige democracia com a frase que inspirou Hemingway para o título de uma das suas obras: “não perguntes por quem os sinos sobram, eles dobram por ti”.

Mas nós comunistas preferimos o desenlace da história e confirmaremos, também neste debate orçamental, que enquanto houver quem lute há esperança.
Disse.»