Lisboa, 25 de Fevereiro de 2014
Assunto: Um "acordo ortográfico" autofágico inconseguido, a sapateia socialista num grupo de "trabalho para lamentar", a inexorável deriva dos continentes, e o matulão que bateu na minha avó
Exmo(a). Senhor(a)
Deputado(a):
Não peço perdão pelo humor negro e consequente sem-cerimónia contidos, desde logo, no assunto desta missiva pois, interpelando cada um dos Senhores Deputados, faço-o comunicando com um ser humano que presumo compreenderá como a Assembleia da República (AR) já ilegitimamente dispôs da minha Língua Materna sem mandato popular (nos programas eleitorais sufragados) para o fazer, nos idos de 2008. Faço-o, não só em representação da Petição que será debatida em plenário na próxima sexta-feira, dia 28, e não apenas em nome das mais de 40 mil pessoas e entidades informalmente reunidas no nosso grupo "Em aCção contra o Acordo Ortográfico" (AO) na rede social Facebook, onde essa Petição teve origem, mas enquanto pessoa pertencente a um povo soberano que liminarmente rejeita, por esmagadora maioria (superior a dois terços), este atropelo destrutivo do nosso mais precioso bem cultural, o suporte material da nossa identidade-memória colectiva. Trata-se de um linguicídio na forma tentada, nada menos.
Tenho, por conseguinte, a honra (ou a veleidade) de assim dar voz à estupefacção e à objecção de consciência dos espectadores da nóvel Engenharia Genética aplicada ao Português-padrão consuetudinário, activa e abjectamente imposta a todo o Sistema de Ensino e à Administração Pública, e impingida à sociedade civil através da manipulação de grande parte dos meios de comunicação social, em particular das televisões generalistas (com destaque para o serviço público de rádio e televisão), tentando artificiosamente criar um "facto consumado" a nível nacional. Com o AO supostamente "em vigor", vigora sim um caos linguístico desagregador, a inferência de que "cada um escreve como quer" suscitada por facultatividades erráticas e excepções casuísticas que nem pessoas, nem programas informáticos, podem ou poderão integrar ou dominar. Passa para os mais novos a impossibilidade de "fazer bem" no acto de escrever, o tanto-faz, a displicência e a tudo isso intimamente se associa uma desvalorização da Cultura Portuguesa, da própria identidade nacional e da matriz civilizacional europeia, aliadas ao cada vez mais profundo desconhecimento do património literário correspondente. O Lince "papa-letras" revela-se plenamente ferramenta da autofagia lusitana, só sustentável pela mesma reverência acrítica que sustentou longamente entre nós a Santa Inquisição; no ILTEC (Instituto de Linguística Teórica e Computacional), o VOP (Vocabulário Ortográfico do Português) faz-se, desfaz-se e refaz-se ao sabor dos ventos do desnorte interpretativo do texto incongruente; e, nas escolas, o "acordês-mixordês" é diferente consoante os manuais provenham de um ou do outro grupo editorial, de entre os dois (Grupo Porto Editora e Grupo Leya) que detêm o monopólio deste negócio milionário consentido por um Ministério da Educação invertebrado, onde parecem alojar-se todos os interesses excepto os que deveriam ser servidos.
Pedia um Deputado poeta, na nossa audição de peticionários (ocorrida a 2 de Julho passado, escassas horas após a demissão irrevogável de Paulo Portas, e disponível em http://youtu.be/UjzMpnJFEjY) , «uma abordagem o mais despida de sentimento possível» (sic), perante a minha invectiva de que fossem aferidos os danos produzidos por esta invenção disgráfica na aprendizagem da Língua Portuguesa pelas crianças actualmente em processo de (an)alfabetização: tragam mais papéis, fazemos colecção... Havendo crianças expostas a riscos objectivos, evidentes e iminentes, será mais eficaz esmiuçar alíneas já inventariadas e recriar esquemas já esboçados, ou dar um grito e deitar-lhes a mão, às crianças? (Escrevo com o afecto de mãe, falei como mãe, tenho esse direito, tenho esse dever.) Eis-me ainda plenamente convicta de se ter esgotado há muito – pelo menos desde 2008, nos pareceres totalmente negativos engavetados, escondidos da AR, no Instituto Camões – o fastidioso argumentário, sendo que hoje os resultados do infeliz experimentalismo heterográfico entra pelos olhos e pelos ouvidos dentro. Para os defensores do indefensável será sempre essa apenas a minha "ótica" mas, contra factos (como os impactos óbvios na pronúncia, na leitura e na compreensão dos textos escritos), nem há contra-argumentos.
Creio, de facto, já esgotadas, porque repisadas, as exortações e os reptos fazendo a dissecção do absurdo qual nova autópsia de um cadáver exumado deambulando no quotidiano dos cidadãos portugueses – esse tratado internacional abstruso que Portugal ensaia em vão aplicar, isolada e autodestrutivamente, que o Brasil ignora olimpicamente e que a África lusófona repudia soberanamente. Mesmo Cabo Verde, tendo ratificado o AO (contrariamente a Angola e a Moçambique), estima tentar aplicá-lo... em 2019, se tiver recursos para tal, e entretanto o continente africano constitui-se relicário da Língua Portuguesa intacta, costumeira, tal como ainda existe nas mentes dos que, por cá, lêem versões de "acordês-mixordês" mutiladas por correctores informáticos discrepantes como se de "gralhas" se tratasse, ainda dispondo da alfabetização que receberam para compreender o que está escrito.
Mas há e houve Deputados poetas. Um dos que houve contou-se entre os quatro que votaram contra em 2008, sendo desses o único que ignorou a "disciplina de voto" imposta por todos os partidos políticos, excepto o CDS, numa matéria sem qualquer conteúdo ideológico, que remete para a consciência individual e para o dever de representação popular.
O Grupo de Trabalho de "Acompanhamento da Aplicação do AO" foi também criado sob proposta – e certamente não sem cedências – do Deputado poeta que interveio na nossa audição de peticionários. Enquanto isso, a Assembleia da República continuou escrevendo "atas" e votando "projetos", «subalimentada de sonho», como diria Natália Correia, Deputada poeta... Neste Grupo de Trabalho, o Coordenador socialista, Carlos Enes, estendeu a passadeira vermelha à sua conterrânea, camarada de partido e de Comissões Parlamentares, a ex-Ministra Gabriela Canavilhas – responsável pelas celebrações do lançamento do conversor ortográfico "Lince", no Palácio da Ajuda, em 2010 – na defesa da obra do anterior Governo, em especial a de uma ex-Ministra da Educação ("Uma aventura governativa" de uma autora infanto-juvenil?) cujos tristes títulos, no comercial Plano Nacional de Leitura, excedem o dobro do número dos de Sophia, ora "acordizados". Tendo sido alegadamente interpeladas todas as Universidades quanto a esta matéria, só duas se terão pronunciado, e favoravelmente ao "status quo": a Universidade de Coimbra, representada para esse efeito por Carlos Reis (conterrâneo e camarada de Carlos Enes e de Gabriela Canavilhas, o primeiro a ser ouvido em audição por este Grupo de Trabalho), e a Universidade Aberta de Lisboa (a única de que Carlos Reis conseguiu ser Reitor e onde Carlos Enes, professor do Ensino Secundário, leccionou).
Todavia, como bem sabem os geólogos, sobretudo se Deputados e poetas, a deriva dos continentes prossegue inexoravelmente. Enquanto em Portugal se cumpre uma directiva de implosão cultural (um genocídio virtual bem objectivável nos motores de pesquisa da Internet) concebida no ócio de dois provectos dicionaristas cuja Língua Materna nem foi o Português, veraneantes da "Lusofonia", circunstancialmente representando duas ineptas Academias, o Brasil "não está nem aí", faz questão do trema nos pinguins, não aglutina qualquer "manda-chuva", mantém a acentuação nas suas ideias.
Redundaram todas estas "avarias", recentemente, no já oficial propósito brasileiro de "simplificar e aperfeiçoar o AO" (sic), ao ter-se revelado insuficiente o extenso incumprimento do AO espelhado no VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa) editado pela ABL (Academia Brasileira de Letras). Foi, unilateral e assumidamente, esta via de simplificação e aperfeiçoamento que levou, primeiro, por diligências de Senadores junto da Presidência, ao adiamento da vigência do AO no Brasil para 2016 e, depois, à criação de um GTT (Grupo de Trabalho Técnico) no Senado brasileiro, incumbido de tal missão, calendarizando as suas actividades até essa data.
A pedido da Comissão de Educação "irmã", os dois Coordenadores desse GTT foram recebidos na AR, num momento que não hesito em qualificar de profundamente vexatório para todo o povo português. Aos expedientes com o objectivo de ocultá-lo seguiram-se as infrutíferas tentativas de desvalorizá-lo, mas ei-lo fielmente transcrito neste tríptico de vídeos: http://www.youtube.com/playlist?list=PLyO-MyI1XE1XRE0I_AEUjjaMIxX7YA0tc . Dura duas horas, a "banda sonora" dessa recepção, somadas as titubeantes boas-vindas da VIII Comissão e a reunião "à porta fechada" com o já encerrado Grupo de Trabalho coordenado por Carlos Enes e Gabriela Canavilhas, porém creio será este um visionamento indispensável para a integral compreensão das actuais repercussões para Portugal do assunto que será debatido e votado na próxima sexta-feira.
Resumidamente, apresenta-se (1) toda a incompetência que ressuma do texto do tratado internacional em causa, em tudo quanto ultrapassa a imposição a portugueses alfabetizados de uma ortografia concebida durante a ditadura de Getúlio Vargas para fazer face a uma gigantesca taxa de analfabetismo, total e funcional, que perdura e se agrava até hoje, no Brasil, na sequência histórica da manipulação unilateral do Português iniciada pelo Brasil em 1906 (facto sistematicamente branqueado, provavelmente pela "lógica petrolífera" que ostensivamente reina na C.P.L.P....), e (2) uma proposta de ortografia "simplex" do "Brasileiro", em que todos os "ch" seriam substituídos por "x", todos os "qu", por "k", o "h" abolido, etc., denotando o quão alheado está o Brasil da cultura que lhe levou a Língua outrora, podendo aí entrever-se uma clivagem entre Língua e cultura responsável quiçá, em acréscimo a um Ensino Público absolutamente desinvestido, pelos calamitosos indicadores culturais que colocam o Brasil, internacionalmente, no patamar dos Países mais subdesenvolvidos neste capítulo, cotado bem abaixo de Países com um P.I.B. muito inferior.
Certamente os Senhores Deputados conhecerão, da Língua Inglesa, os vocábulos "cough" (lê-se "cóf", tosse), "tough" (lê-se "tâf", resistente), "though" (lê-se "dâu", apesar de), "through" (lê-se "thru", através de), "plough" (escreve-se "plow" nos Estados Unidos da América, lê-se "pláu", arado)... A sequência "-ough" é etimológica e pronuncia-se das mais variadas formas. A escrita não é, nem pode ser, uma transcrição fonética; é uma realização da Língua que permite a sua estabilidade temporal e a sua continuidade histórica, veiculando uma dimensão simbólica que transcende a oralidade e não se compadece de manipulações artificiais operadas por conveniências de qualquer espécie. De facto, sem mudanças ao longo dos últimos três séculos, o Inglês-padrão de Oxford não se queixa da sua pujança (e prestígio!) internacional, nem sofre ou rivaliza – antes ganha – com o "americano", sendo não só sintoma do poder económico do conjunto dos Países anglófonos (em todas as suas variantes), mas sobretudo consequência da confluente pujança da actividade literária, da indústria cinematográfica, em suma da qualidade de todas as realizações culturais da Língua viva.
O próximo dia 28 é também, por coincidência, o último dia da exposição de fotografia de Gastão Brito e Silva, do seu projecto "RUIN'ARTE", patente na Assembleia da República. Lá podem ver-se, em ruínas (algumas já demolidas), jóias da memória de Portugal votadas à incúria de nós todos, uns com mais responsabilidades do que outros, e o esforço gracioso e quixotesco de um homem na pesquisa, na denúncia, no inconformismo, desde 2008. Nesses olhares gritados sobre escombros do corpo de um País, veja-se também, em espelho, a materialização do ataque que, por negligência grosseira, se vem desferindo ou consentindo contra a Língua Portuguesa. Seja no corpo, seja na alma, aí está bem patente a falta de amor-próprio, a ignorância epidémica, o mercantilismo néscio: não sabemos ser dignos das gerações passadas nem das gerações futuras.
A memória de um povo só o é enquanto não for apenas pensada, mas agida, pois não se transmite por capilaridade, por "ouvir dizer", transmite-se por actos, por valores, por um quotidiano vivido de realidades que transportam, operam e reformulam a narrativa que fazemos sobre quem somos. Nas palavras, permanecemos mais que nós, somos o que fomos e o que construirmos com base nessa continuidade natural, espontânea, que o uso consagra e a consagração usa. Entre o passado e o futuro, situar-nos-emos e seremos a âncora identitária dos vindouros, privilégio e responsabilidade nossa.
Em 1986, juntei-me ao movimento de contestação ao anteprojecto de AO Luso-Brasileiro, no Grémio Literário. Vinte e sete anos volvidos, assisto hoje ao descalabro que então se temia. Vejo uma "geração cobaia" de crianças e jovens ser preparada para a iliteracia por via das multigrafias provisórias que os políticos desta terra entenderem fazer "vigorar" em cada momento e dos negócios que se fizerem em torno disso. O espaço que parece sobrar para os financiadores dos partidos políticos e para os feudos criados pelos "pactos de regime" é o mesmo espaço vital que se afigura escasso para os cidadãos. Esgotadas as vias políticas, parecem restar-nos as vias judiciais para pôr cobro à insustentável prepotência-de-Estado.
Eis a parte do "matulão que bateu na minha avó", metaforicamente em epígrafe. Cabe a cada representante eleito de nós todos sê-lo, ou não.
Se o AO morreu no Brasil, que morra em Portugal. Já chega. Que morra. Pim!
Madalena Homem Cardoso
(representante da «Petição pela Desvinculação de Portugal ao "Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa" (AO90)», Petição nº 259/XII/2ª)
N.A. – FIXAÇÃO "NE VARIETUR" DO TEXTO DESTA CARTA ABERTA – A autora desta comunicação declara que não autoriza a transformação por meio do conversor “Lince”, nem a adulteração por qualquer outro meio, informático ou manual, de “correcção ortográfica” ou outro, deste texto ou de excertos dele retirados, manifestando tal oposição ao abrigo da norma declarativa constante do artigo 56º, nº 1, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
Assunto: Um "acordo ortográfico" autofágico inconseguido, a sapateia socialista num grupo de "trabalho para lamentar", a inexorável deriva dos continentes, e o matulão que bateu na minha avó
Exmo(a). Senhor(a)
Deputado(a):
Não peço perdão pelo humor negro e consequente sem-cerimónia contidos, desde logo, no assunto desta missiva pois, interpelando cada um dos Senhores Deputados, faço-o comunicando com um ser humano que presumo compreenderá como a Assembleia da República (AR) já ilegitimamente dispôs da minha Língua Materna sem mandato popular (nos programas eleitorais sufragados) para o fazer, nos idos de 2008. Faço-o, não só em representação da Petição que será debatida em plenário na próxima sexta-feira, dia 28, e não apenas em nome das mais de 40 mil pessoas e entidades informalmente reunidas no nosso grupo "Em aCção contra o Acordo Ortográfico" (AO) na rede social Facebook, onde essa Petição teve origem, mas enquanto pessoa pertencente a um povo soberano que liminarmente rejeita, por esmagadora maioria (superior a dois terços), este atropelo destrutivo do nosso mais precioso bem cultural, o suporte material da nossa identidade-memória colectiva. Trata-se de um linguicídio na forma tentada, nada menos.
Tenho, por conseguinte, a honra (ou a veleidade) de assim dar voz à estupefacção e à objecção de consciência dos espectadores da nóvel Engenharia Genética aplicada ao Português-padrão consuetudinário, activa e abjectamente imposta a todo o Sistema de Ensino e à Administração Pública, e impingida à sociedade civil através da manipulação de grande parte dos meios de comunicação social, em particular das televisões generalistas (com destaque para o serviço público de rádio e televisão), tentando artificiosamente criar um "facto consumado" a nível nacional. Com o AO supostamente "em vigor", vigora sim um caos linguístico desagregador, a inferência de que "cada um escreve como quer" suscitada por facultatividades erráticas e excepções casuísticas que nem pessoas, nem programas informáticos, podem ou poderão integrar ou dominar. Passa para os mais novos a impossibilidade de "fazer bem" no acto de escrever, o tanto-faz, a displicência e a tudo isso intimamente se associa uma desvalorização da Cultura Portuguesa, da própria identidade nacional e da matriz civilizacional europeia, aliadas ao cada vez mais profundo desconhecimento do património literário correspondente. O Lince "papa-letras" revela-se plenamente ferramenta da autofagia lusitana, só sustentável pela mesma reverência acrítica que sustentou longamente entre nós a Santa Inquisição; no ILTEC (Instituto de Linguística Teórica e Computacional), o VOP (Vocabulário Ortográfico do Português) faz-se, desfaz-se e refaz-se ao sabor dos ventos do desnorte interpretativo do texto incongruente; e, nas escolas, o "acordês-mixordês" é diferente consoante os manuais provenham de um ou do outro grupo editorial, de entre os dois (Grupo Porto Editora e Grupo Leya) que detêm o monopólio deste negócio milionário consentido por um Ministério da Educação invertebrado, onde parecem alojar-se todos os interesses excepto os que deveriam ser servidos.
Pedia um Deputado poeta, na nossa audição de peticionários (ocorrida a 2 de Julho passado, escassas horas após a demissão irrevogável de Paulo Portas, e disponível em http://youtu.be/UjzMpnJFEjY) , «uma abordagem o mais despida de sentimento possível» (sic), perante a minha invectiva de que fossem aferidos os danos produzidos por esta invenção disgráfica na aprendizagem da Língua Portuguesa pelas crianças actualmente em processo de (an)alfabetização: tragam mais papéis, fazemos colecção... Havendo crianças expostas a riscos objectivos, evidentes e iminentes, será mais eficaz esmiuçar alíneas já inventariadas e recriar esquemas já esboçados, ou dar um grito e deitar-lhes a mão, às crianças? (Escrevo com o afecto de mãe, falei como mãe, tenho esse direito, tenho esse dever.) Eis-me ainda plenamente convicta de se ter esgotado há muito – pelo menos desde 2008, nos pareceres totalmente negativos engavetados, escondidos da AR, no Instituto Camões – o fastidioso argumentário, sendo que hoje os resultados do infeliz experimentalismo heterográfico entra pelos olhos e pelos ouvidos dentro. Para os defensores do indefensável será sempre essa apenas a minha "ótica" mas, contra factos (como os impactos óbvios na pronúncia, na leitura e na compreensão dos textos escritos), nem há contra-argumentos.
Creio, de facto, já esgotadas, porque repisadas, as exortações e os reptos fazendo a dissecção do absurdo qual nova autópsia de um cadáver exumado deambulando no quotidiano dos cidadãos portugueses – esse tratado internacional abstruso que Portugal ensaia em vão aplicar, isolada e autodestrutivamente, que o Brasil ignora olimpicamente e que a África lusófona repudia soberanamente. Mesmo Cabo Verde, tendo ratificado o AO (contrariamente a Angola e a Moçambique), estima tentar aplicá-lo... em 2019, se tiver recursos para tal, e entretanto o continente africano constitui-se relicário da Língua Portuguesa intacta, costumeira, tal como ainda existe nas mentes dos que, por cá, lêem versões de "acordês-mixordês" mutiladas por correctores informáticos discrepantes como se de "gralhas" se tratasse, ainda dispondo da alfabetização que receberam para compreender o que está escrito.
Mas há e houve Deputados poetas. Um dos que houve contou-se entre os quatro que votaram contra em 2008, sendo desses o único que ignorou a "disciplina de voto" imposta por todos os partidos políticos, excepto o CDS, numa matéria sem qualquer conteúdo ideológico, que remete para a consciência individual e para o dever de representação popular.
O Grupo de Trabalho de "Acompanhamento da Aplicação do AO" foi também criado sob proposta – e certamente não sem cedências – do Deputado poeta que interveio na nossa audição de peticionários. Enquanto isso, a Assembleia da República continuou escrevendo "atas" e votando "projetos", «subalimentada de sonho», como diria Natália Correia, Deputada poeta... Neste Grupo de Trabalho, o Coordenador socialista, Carlos Enes, estendeu a passadeira vermelha à sua conterrânea, camarada de partido e de Comissões Parlamentares, a ex-Ministra Gabriela Canavilhas – responsável pelas celebrações do lançamento do conversor ortográfico "Lince", no Palácio da Ajuda, em 2010 – na defesa da obra do anterior Governo, em especial a de uma ex-Ministra da Educação ("Uma aventura governativa" de uma autora infanto-juvenil?) cujos tristes títulos, no comercial Plano Nacional de Leitura, excedem o dobro do número dos de Sophia, ora "acordizados". Tendo sido alegadamente interpeladas todas as Universidades quanto a esta matéria, só duas se terão pronunciado, e favoravelmente ao "status quo": a Universidade de Coimbra, representada para esse efeito por Carlos Reis (conterrâneo e camarada de Carlos Enes e de Gabriela Canavilhas, o primeiro a ser ouvido em audição por este Grupo de Trabalho), e a Universidade Aberta de Lisboa (a única de que Carlos Reis conseguiu ser Reitor e onde Carlos Enes, professor do Ensino Secundário, leccionou).
Todavia, como bem sabem os geólogos, sobretudo se Deputados e poetas, a deriva dos continentes prossegue inexoravelmente. Enquanto em Portugal se cumpre uma directiva de implosão cultural (um genocídio virtual bem objectivável nos motores de pesquisa da Internet) concebida no ócio de dois provectos dicionaristas cuja Língua Materna nem foi o Português, veraneantes da "Lusofonia", circunstancialmente representando duas ineptas Academias, o Brasil "não está nem aí", faz questão do trema nos pinguins, não aglutina qualquer "manda-chuva", mantém a acentuação nas suas ideias.
Redundaram todas estas "avarias", recentemente, no já oficial propósito brasileiro de "simplificar e aperfeiçoar o AO" (sic), ao ter-se revelado insuficiente o extenso incumprimento do AO espelhado no VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa) editado pela ABL (Academia Brasileira de Letras). Foi, unilateral e assumidamente, esta via de simplificação e aperfeiçoamento que levou, primeiro, por diligências de Senadores junto da Presidência, ao adiamento da vigência do AO no Brasil para 2016 e, depois, à criação de um GTT (Grupo de Trabalho Técnico) no Senado brasileiro, incumbido de tal missão, calendarizando as suas actividades até essa data.
A pedido da Comissão de Educação "irmã", os dois Coordenadores desse GTT foram recebidos na AR, num momento que não hesito em qualificar de profundamente vexatório para todo o povo português. Aos expedientes com o objectivo de ocultá-lo seguiram-se as infrutíferas tentativas de desvalorizá-lo, mas ei-lo fielmente transcrito neste tríptico de vídeos: http://www.youtube.com/playlist?list=PLyO-MyI1XE1XRE0I_AEUjjaMIxX7YA0tc . Dura duas horas, a "banda sonora" dessa recepção, somadas as titubeantes boas-vindas da VIII Comissão e a reunião "à porta fechada" com o já encerrado Grupo de Trabalho coordenado por Carlos Enes e Gabriela Canavilhas, porém creio será este um visionamento indispensável para a integral compreensão das actuais repercussões para Portugal do assunto que será debatido e votado na próxima sexta-feira.
Resumidamente, apresenta-se (1) toda a incompetência que ressuma do texto do tratado internacional em causa, em tudo quanto ultrapassa a imposição a portugueses alfabetizados de uma ortografia concebida durante a ditadura de Getúlio Vargas para fazer face a uma gigantesca taxa de analfabetismo, total e funcional, que perdura e se agrava até hoje, no Brasil, na sequência histórica da manipulação unilateral do Português iniciada pelo Brasil em 1906 (facto sistematicamente branqueado, provavelmente pela "lógica petrolífera" que ostensivamente reina na C.P.L.P....), e (2) uma proposta de ortografia "simplex" do "Brasileiro", em que todos os "ch" seriam substituídos por "x", todos os "qu", por "k", o "h" abolido, etc., denotando o quão alheado está o Brasil da cultura que lhe levou a Língua outrora, podendo aí entrever-se uma clivagem entre Língua e cultura responsável quiçá, em acréscimo a um Ensino Público absolutamente desinvestido, pelos calamitosos indicadores culturais que colocam o Brasil, internacionalmente, no patamar dos Países mais subdesenvolvidos neste capítulo, cotado bem abaixo de Países com um P.I.B. muito inferior.
Certamente os Senhores Deputados conhecerão, da Língua Inglesa, os vocábulos "cough" (lê-se "cóf", tosse), "tough" (lê-se "tâf", resistente), "though" (lê-se "dâu", apesar de), "through" (lê-se "thru", através de), "plough" (escreve-se "plow" nos Estados Unidos da América, lê-se "pláu", arado)... A sequência "-ough" é etimológica e pronuncia-se das mais variadas formas. A escrita não é, nem pode ser, uma transcrição fonética; é uma realização da Língua que permite a sua estabilidade temporal e a sua continuidade histórica, veiculando uma dimensão simbólica que transcende a oralidade e não se compadece de manipulações artificiais operadas por conveniências de qualquer espécie. De facto, sem mudanças ao longo dos últimos três séculos, o Inglês-padrão de Oxford não se queixa da sua pujança (e prestígio!) internacional, nem sofre ou rivaliza – antes ganha – com o "americano", sendo não só sintoma do poder económico do conjunto dos Países anglófonos (em todas as suas variantes), mas sobretudo consequência da confluente pujança da actividade literária, da indústria cinematográfica, em suma da qualidade de todas as realizações culturais da Língua viva.
O próximo dia 28 é também, por coincidência, o último dia da exposição de fotografia de Gastão Brito e Silva, do seu projecto "RUIN'ARTE", patente na Assembleia da República. Lá podem ver-se, em ruínas (algumas já demolidas), jóias da memória de Portugal votadas à incúria de nós todos, uns com mais responsabilidades do que outros, e o esforço gracioso e quixotesco de um homem na pesquisa, na denúncia, no inconformismo, desde 2008. Nesses olhares gritados sobre escombros do corpo de um País, veja-se também, em espelho, a materialização do ataque que, por negligência grosseira, se vem desferindo ou consentindo contra a Língua Portuguesa. Seja no corpo, seja na alma, aí está bem patente a falta de amor-próprio, a ignorância epidémica, o mercantilismo néscio: não sabemos ser dignos das gerações passadas nem das gerações futuras.
A memória de um povo só o é enquanto não for apenas pensada, mas agida, pois não se transmite por capilaridade, por "ouvir dizer", transmite-se por actos, por valores, por um quotidiano vivido de realidades que transportam, operam e reformulam a narrativa que fazemos sobre quem somos. Nas palavras, permanecemos mais que nós, somos o que fomos e o que construirmos com base nessa continuidade natural, espontânea, que o uso consagra e a consagração usa. Entre o passado e o futuro, situar-nos-emos e seremos a âncora identitária dos vindouros, privilégio e responsabilidade nossa.
Em 1986, juntei-me ao movimento de contestação ao anteprojecto de AO Luso-Brasileiro, no Grémio Literário. Vinte e sete anos volvidos, assisto hoje ao descalabro que então se temia. Vejo uma "geração cobaia" de crianças e jovens ser preparada para a iliteracia por via das multigrafias provisórias que os políticos desta terra entenderem fazer "vigorar" em cada momento e dos negócios que se fizerem em torno disso. O espaço que parece sobrar para os financiadores dos partidos políticos e para os feudos criados pelos "pactos de regime" é o mesmo espaço vital que se afigura escasso para os cidadãos. Esgotadas as vias políticas, parecem restar-nos as vias judiciais para pôr cobro à insustentável prepotência-de-Estado.
Eis a parte do "matulão que bateu na minha avó", metaforicamente em epígrafe. Cabe a cada representante eleito de nós todos sê-lo, ou não.
Se o AO morreu no Brasil, que morra em Portugal. Já chega. Que morra. Pim!
Madalena Homem Cardoso
(representante da «Petição pela Desvinculação de Portugal ao "Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa" (AO90)», Petição nº 259/XII/2ª)
N.A. – FIXAÇÃO "NE VARIETUR" DO TEXTO DESTA CARTA ABERTA – A autora desta comunicação declara que não autoriza a transformação por meio do conversor “Lince”, nem a adulteração por qualquer outro meio, informático ou manual, de “correcção ortográfica” ou outro, deste texto ou de excertos dele retirados, manifestando tal oposição ao abrigo da norma declarativa constante do artigo 56º, nº 1, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.